João Garcia Miguel
[este é um trabalho publicado originalmente nos Cadernos do Rivoli O7, edição respeitante aos trabalhos não apresentados no Teatro Municipal do Porto]
o texto caiu às sortes, gotas de tinta chuva formando carreiros de letras impressas numa ordem geométrica imperceptível ou quase. Lidas as frases acrescentaram-se as vozes. Fizeram-se organismos das letras. E das letras fizeram-se órgãos. Outras vezes lidas e outras vezes dissolvidas novamente organizadas. É um trabalho que não parece ser. E através dessas operações fizeram-se de novo surgi-las noutros lugares às letras e às palavras. Tem como base todo este trabalho uns exercícios de matemática que falha. Frases furtadas e separadas de um texto às quais se adjudicaram outras frases que emergiram numa geometria que se compõe como uma acção sistemática e imperfeita. É um poema e acção. Esperou-se — nesse exercício de esperança de fazer exercícios que algo surgisse de novo. Esperou-se uma gravidez feita de acasos. De sortes. Esperança que ao abrir um documento novo, ao estender um lençol num bosque, ou ao buscar uma folha de papel algo aconteça. Um milagre. Somos um clube de trabalhadores e trabalhamos o milagre. Incansáveis trabalhadores da espera. Tanto faz que aconteça ou não. Fazemos exercícios. Contamos que ao acontecer — se vier nalgum instante a dar-se, porque os milagres dão-se assim sem mais — que não se repita. Um milagre nunca se repete e é por isso que se dá. Oferece-se. Isso é o mesmo que dizer que ao ler é por entre linhas que pressentimos o milagre que se escapa. Fugidio como bandeira de luz. Os olhos — saltando como bolas — fortuitamente por entre letras e chão, ao acaso e num exercício de ginástica interna despoletam movimentos interiores. Pequenos milagres por entre as fibras da alma. Através dos olhos ligam-se os ouvidos com as mãos, a barriga com os pés, os dedos com as borboletas. Exercícios da carne. Deslocações impercetíveis. Fugitivas. Um corpo monta-se num círculo. Em andaimes. A prática, a exercitação, o desempenho, o uso frequente de actos de leitura conduz à circularidade. À subida e à descida, à entrada e à saída. O círculo é o contrário do milagre: é o mundo. O mundo está contido no exercício dos corpos dos quais somos involuntários prisioneiros. O mundo sem milagres é insuficiente para atingir a liberdade dentro e fora dos corpos. É por isso que o milagre nos incendeia. E consome as esperas e os corpos.
milagre que não é precisamente uma arbitrariedade
nasce fundo numa luz
dorme numa cabeça
molhada deitada
numa almofada
se calhar não chegam a compreender
as palavras
o degelo do corpo
as cabeças
objectos para a criação de espaço, espelhos para a criação
de imagens, pessoas para a criação de silêncio
esses criminosos sem crimes
o amor e a palavra são belos crimes — e imperdoáveis
porque a mão que transpira
empola o livro
queremos coisas simples que
as pessoas estão confusas
e andam silenciosas
gostaria de escrever o livro de que tenho medo, mas os
meus dias, afinal longos, são ameaçados pela esterilidade
sinto primeiro e vejo depois
duas linhas invisíveis que
sobem ao lado de lado
dos corpos
entram pelos ossos maxilares
e seguram os olhos
é fascinante, debaixo de uma luz que brilha tanto
a fogueira cá dentro a arder
e os olhos a diminuir
chega o verão, e subo à montanha, e vou para o mar
apanho pedras que
trago nos bolsos e que
ameaçam esmagar-me os testículos
embrulho num papel o meu medo
os papéis
são um motor, trabalhando ininterruptamente; os papéis
trabalham pelos dias dentro e no meio da noite
e o motor não me deixa fechar os
olhos
não me deixa dormir e
divago pela casa, bêbado de hesitação, dissipo-me em passos,
mergulho em sonos brutais
há um olho que se abre
um estômago que se fecha e murmura
como um pegador de fogos
porque fizeste isso?
porque regaste as rosas
e os pés com gasolina
não sei digo e
quem sou eu para que me ataquem as vozes?
porque não te calaste
porque fizeste do silêncio a tua
velocidade
oiço a minha voz a dizer-me que
ando à procura da minha velocidade
a fazer exercícios de combustão
a ligar e desligar os motores das palavras
se me aplicar bastante, segundo uma regra minha
interior que hei-de descobrir, ficarei com os pés queimados
descobri a Índia,
fui eu que descobri
a Índia afinal com as
mãos quentes e seguras que fazem desenhos sobre a mesa,
no ar, na conversa
sinto a pequenez a crescer
como uma bola
sinto em mim um casulo de onde
nasce uma borboleta e no corpo
das pessoas, a alegria fervia dentro dos corpos — via-se isso
uma borboleta pequena e branca
a mudar de cor
uma borboleta lá bem
no sangue a ferver
sou um homem de pouca qualidade
espero
multiplico-me por zero
aconteço-me noutra dimensão
ocorro-me num paralelo amarelo
não tenciono ser demasiado claro a respeito de coisa alguma
roubo frases
aprendo a ler
a barriga dos bichos
de onde saem os
animais e
amo-as em pânico
as barrigas das raparigas
penso, oiço? Talvez diga
escrever não é uma simples volúpia, ou uma responsabilidade
moral. Deve ser um acto de cruel religiosidade, uma espécie
de inteligentíssima expiação do crime obscuro de não ter morrido
esse meu crime
esse meu ódio à palavra é
um amor à palavra que se disse e
à palavra paralela que ficou a boiar na boca
mas
sou um sôfrego: tenho o talento do amor
que impele o corpo a
tornar-se sopro e som
e por fim palavra
a morrer antes de nascer
esse talento que é meu e eu
cresço, durmo só
tenho uma almofada molhada
onde deito a cabeça
e faço mapas de baba e
abro a mão e
tiro do bolso o meu pequeno canivete e, no braço nu, traço
um golpe fundo
como uma língua
uma estrada
não sei se me lembro
para onde fui e depois
é o meu espectáculo e o monstro aparece em cena
abre um chapéu de chuva e
vira-o do avesso — abana o
corpo e deixa cair dos bolsos
os testículos e
descubro também que sou pobre
esmago a pobreza
e as ameixas que roubei
dentro dos bolsos e o vermelho
suja-me as mãos e
tenciono
aprender devagar e penosamente o ritmo da feminilidade, aquele
lugar onde elas têm vestidos claros e riem, ou onde de súbito
ficam silenciosas e são lentas
fecho de seguida o corpo
e não aguento
elas nunca terão a minha violência
deito tudo o que é meu
num lençol estendido e
mais outra vez sinto que
cresci durante a minha doença
passei dias e noites a tremer
com medo dos
devoradores de testículos
habitantes do lado oculto
de onde o milagre se levanta
e refugiei-me no
trabalho das mulheres
o trabalho de sentir o calor dos peitos
esses fios feitos de palavras missangas
e perigos de vida
a idade é: cada vez mais atenção. Só te resta isso, caminhador:
o perigo
e ainda restam mais palavras
que desconhecem os teus pés
fazem-te tropeçar no coração
sublinho a desonestidade e o carácter
das que incendeiam a
testemunha que ressuscita
entre a frase e a ânsia
arranjamos um quarto, despimo-nos, e depois estamos noutro
quarto, e estamos a despir-nos, e de novo a fazer amor, quatro,
seis, oito em cima do tapete — o terrível milagre de uma
alucinação de pernas, braços, seios, mãos, sexos, coxas, cabeças,
vestidos, camisas
e os
olhos deixando
buracos no silêncio que
os blocos do diálogo. O diálogo avançava e recuava
empurrando as testemunhas
ressuscitando o motor que trabalhava
e
o papel
alimentando as pessoas caladas, um pequeno motor silencioso
às voltas tontas
às voltas sorrindo
duas bolas nas margens
e uns olhos a ver o rio em
camara ardente
muito melhor assim
a memória tão quente
a ir e a voltar como um animal
a escavar no ressuscitado
esse olhar que me olha e eu
compreendia tudo, e despira a roupa para meter-me nu
na terra mole, e comera terra, e andara à roda até cair para o lado
li isto num livro
um livro americano talvez e
sinto que sou africano e
teatral eu, sim — mas uma cabeça cheia de terrível amor
escrevo livros e
mato todos os meus ressuscitados
leitores e depois em silêncio
parti para um lugar, com o propósito de semear cabeças de
crianças, e ouvi-las cantar quando o dia acaba
e escrevo livros para crianças
escondidas atrás das páginas
escondidas atrás das portas
guardei e perdi-as as
cabeças de crianças
caídas dos meus bolsos
à força de conhecer tanta gente, ganhei uma inteligência
muito aguda — inteligia as pessoas
fiz tantos exercícios
que não cabem nas palavras e caem
como coisas
que se procuram nos bolsos e
é claro
masturbava-me muito depressa, porque era preciso encher o
espaço, encontrar alguém, morrer depressa
uma mão puxou-me pela gola
e a voz
perguntou medo? Só tenho o meu disse, o meu terror
e trabalho o ressuscitar
trabalho as fúrias que me dão e
ela voltou-se e pôs-se de joelhos na cama, dobrada e disse
mete no cu
sou um escultor e peço desculpa
por todas essas palavras que caem mal
não tenho instrumentos esculpo com canivetes
e abro estradas nos bolsos das calças
sou uma espécie de puta eu, e não tenho medo, murmurou
eu trabalho na terra
trabalho com as mãos
o que nos vai acontecer?
trabalhar o amor
ser assim o amor
vamos perder-nos
acordados. Há muitas coisas por cima das cabeças deles.
Vejamos: fome? Sim. E cansaço? Sim. E doença e frio e medo? Sim,
sim. E ela voltou mais tarde. Escuta, disse eu, não tenho medo.
Trazia café e cigarros. Vamos salvar isto, murmurei
trabalhamos o corpo disse eu
trabalhamos o milagre disse ela
trabalhamos e
estamos perdidos e
eu digo
salva isto tudo
faz um milagre
chama as testemunhas e
como arranjas algum dinheiro às vezes?
faço uma bola
abro as palavras e
ponho crianças dentro
a última vez que me decapitaram
foi a primeira vez
que cortaram a luz
essa luz que
vinha pelas nossas costas e, no espelho, parecia que os
nossos corpos saltavam para diante, como tremendos anjos
brancos, cheios de uma violenta anunciação
a luz batia-nos nas mãos e saltava
a luz escondia e ressuscitava os
corpos que
saltavam na luz. Éramos fortes como o diabo. Merda, disse ela,
temos de salvar tudo
principalmente a música
somos os anjos
escutamos a música
percorrendo a carne
abrindo-a e
se soubessem matavam-nos
aos ressuscitados
aos que olham
eternamente como estátuas
o resto
era uma técnica: os telefonemas. Mete-se uma moeda,
sai uma pessoa. A voz de uma pessoa
mete-se uma moeda nos olhos
sai um milagre
sai um corpo ressuscitado
sejamos sensatos. Não é possível meter uma moeda, ouvir uma
voz, e dizer: dê-me tempo, nome, inteligência, amor
tudo o que cai sempre que cai
cai por acaso
quando caímos é por acaso
que o chão nos segura e
não te entregues ao acaso
entrega-te à dissolução
ao roubo
aos olhos
à música e ao amor do anjo que
cerca-te como um anel de prata em brasa, e então tu ficas
fascinado
pela fascinação que fizeste nascer no anjo
são as asas
que crescem nas minhas costas
que me fazem doer e põe-me todo a
tremer e eu
tremia, era um modo agora de conhecer o meu corpo — e ela, sim
incorria nessa ciência de conhecer o corpo, tremia: e o nosso amor
estava a ser vermos o corpo tremendo, vendo cada um o seu corpo e
o corpo do outro
encostávamos as asas
e tremíamos e fazíamos aqueles
trejeitos que o corpo faz
para acomodar as camisolas
e adormecíamos
sabem? — é bom ver dormir uma pessoa
sono a deslizar pela pele
a raiz da luz a arranhar e
ficaram as mãos
a olhar
as mãos decepadas a olhar a
raiz do sorriso é a mesma raiz das mãos
os olhos ligados a esse nervo antigo
que esconde o fogo e a luz
lá onde nasceu a raiz e o pé
interiormente
nunca se sabe bem se nos merecemos a nós mesmos
somos a subida de soluços
oprimidos e noutros tempos caídos
para o fundo da carne
tu
possuis uma alta voltagem — tu sim, poeta inédito
lanças pedras
partes vidros
circulas pela velocidade e roubas o
sinal que diz
não tocar
fazes festas aos medos
desfazes em pó os joelhos e
trabalhas
a engasgar
a terra e os perigos
amas
o canivete e a língua aberta
cortada por onde bebes o sangue
e sabes a perigo sabes a beijos
meus irmãos é
demasiado pesada a vossa festa
oiço dizer estou perdido e
de dentro dos meus gestos
nasce uma borboleta
que voa e desaparece como eu
o desempregado
operário da paixão
Este texto foi escrito segundo a obra POEMACTO de Herberto Hélder onde o poeta extrai como um exercício geométrico de escrita as linhas do poema do romance Húmus de Raul Brandão. De igual modo extraí num exercício matemático linhas do texto APRESENTAÇÃO DE UM ROSTO de Herberto Hélder e dispu-las numa ordem outra. Acrescentei depois uma escrita entrelinhas que estabelece diálogos com o poema e o poeta e as suas personagens. Chamo a esta escritura instrumental um ou uma POEMAÇÃO.
Carvalhal, 20 de Outubro 2020
João Garcia Miguel
João Garcia Miguel é artista e investigador. Doutorado em Pintura e Performance. Director da Companhia João Garcia Miguel e Presidente da Associação Teatro Ibérico. Director Artístico do Teatro Cine de Torres Vedras, do Festival Novas Invasões e Festival de Acordeões do Mundo.
As suas práticas de investigação caracterizam-se pelo experimentalismo performativo e a preocupação com o papel do artista enquanto interventor social. Ministra aulas em Universidades desde 2003 em Portugal e estrangeiro — Esad/IPL, Lusófona, FCSH Nova e NTA — Norwegian Theatre Academy. Escreve obras performativas e ensaios que refletem sobre o acto criativo e o corpo. Tem um foco de interesse actual que é a poesia como meio de despertar a consciência e a relação com o Outro — seja sujeito ou a Natureza. Expõe com regularidade. Fundador de Canibalismo Cósmico, Galeria Zé dos Bois e do OLHO – Grupo de Teatro. Doutorado pela FBAUL em 2017 com a tese “PERFORMANCE CORPO E INCONSCIENTE”. Em 2008 recebe Prémio FAD Sebastià Gasch em Espanha e em 2014 o Prémio de Melhor Encenação da SPA com Yerma de Garcia Lorca.