Verão Danado, Pedro Cabeleira, OPTEC Filmes, 2017

Paulo Filipe Monteiro

30 de Novembro de 2017

Gosto muito de filmes que não se parecem com nada (imagino a dificuldade de alguns críticos que julgam que a sua função é pôr os filmes em caixinhas pré-existentes). E podem ser filmes que pouco têm a ver com os meus, mas com cada qual faço um corpo a corpo, que aqui comento telegraficamente.

Verão Danado é uma combinação de uma onda colectiva, geracional (cineastas e actores que se conheceram na Escola Superior de Teatro e Cinema e gostam uns dos outros) com um enorme e lúcido talento do realizador Pedro Cabeleira, que soube guiar essa energia num sentido muito pessoal e coerente, sacando de cada um e de todos o melhor que podiam dar e retribuindo-lhes amorosamente tudo, elevado à potência do cinema. É uma experiência de uma geração (de vinte, vinte e poucos anos) com pouca experiência mas que a vive a fundo. Mais do que um filme experimental, é um filme experiencial.

Começa numa situação rural para, depois de estender a roupa em Lisboa e dançar futebol, ir para a noite até atingir uma temperatura incandescente e ficar nela. Todas as suas fases são necessárias. Cabeleira é agudo e terno na observação humana, mesmo no meio do transe. E acredita que são os actores quem melhor nos pode transmitir essa riqueza e subtileza das personagens. Os actores e actrizes, talvez cem, estão todos bem, sem excepção nem mais ou menos bem: e não é fácil, porque o registo improvisado e coloquial pode parecer simples mas só com direcção segura e securizante, estruturada e instintiva, esse registo se pode tornar interessante e verdadeiro, não apenas verosímil.

E a maneira como tudo é filmado! Há planos que não têm explicação, apenas sentimos que estão certos e são precisos, sem sabermos porquê. O mesmo para a banda sonora, quase sempre música de dança hardcore mas onde com igual necessidade se incorporam músicas do Azguime, do Zíngaro, do Peirce de Azevedo. Um som que tanto pode ser avassalador como engolir-nos de repente no choque do silêncio. Tudo isto resulta num filme onde estão sempre a acontecer coisas, em termos humanos e em termos de cinema.

Filmado em 2014, sem financiamentos, numa aposta colectiva que transparece no resultado, o realizador teve também a inteligência de saber esperar para, com apoios à pos-produção, poder finalizá-lo devidamente. Esteve em Locarno (onde ganhou menção especial do júri), em Turim, no Rio de Janeiro, em Mar del Plata. E agora em Portugal, onde estou certo que, daqui a muitos anos, iremos voltando a ele, até porque nos dá o pulsar de um tempo. Não, esta explosão de vitalidade não é um retrato de uma geração perdida, é aquilo que lá está, sem etiquetas, e nos larga em total alvoroço. E só mesmo quem se deixa levar na dicotomia trabalho-lazer pode pensar que a festa é coisa de somenos. É de somais!


Paulo Filipe Monteiro encenou 16 espectáculos de teatro e fez dramaturgia para espectáculos de dança. Como actor, participou em várias peças, longas-metragens portuguesas e estrangeiras telefilmes e séries de televisão. Escreveu 8 longas-metragens. Escreveu a peça de teatro Área de Risco (1999 FCG). Realizou os filmes Amor Cego (2010), Zeus (2017), que ganhou 12 prémios em Portugal e no estrangeiro, e Pas de Quoi (2020).
Professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa: fundador e coordenador do Mestrado em Artes Cénicas; coordenador da variante de Comunicação e Artes do Mestrado e Doutoramento em Ciências da Comunicação. Foi professor convidado em universidades da Europa e Brasil. Recebeu o Prémio Joaquim de Carvalho para o livro Drama e Comunicação (posteriormente reeditado no Brasil).

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