Arte da performance made in Portugal. Uma aproximação à(s) história(s) da arte da performance portuguesa, de Cláudia Madeira

Recensão de Paulo Reis

No ano de 1989 os artistas Ricardo Basbaum e Alex Hamburger escreveram uma carta[1] para a historiadora e pesquisadora RoseLee Goldberg compartilhando o impacto de seu livro sobre performance e live-art e “considerando-o aliado ao tipo de pensamento–fluxo-mental-formas-de-arte com o qual nos identificamos”. Afirmavam eles a relevância e pioneirismo do livro, no sentido de proporcionar uma reflexão desvinculada dos cânones habituais da arte. A carta trazia ainda a sugestão de uma outra abrangência para a pesquisa de Goldberg e, desta forma, eles se dispuseram a “prover maiores informações acerca da performance no Brasil”. A troca de correspondência, que se concluiu com uma breve resposta da pesquisadora sete meses depois, apontava uma sintonia intelectual por parte dos dois artistas mas também advogava um olhar mais comprometido com outras histórias que não somente as hegemônicas.

Ao trazer a ação dos dois artistas brasileiros sublinho a necessidade do entendimento da pluralidade das expressões culturais e artísticas e, não menos necessário, assumindo uma postura que contemple a diversidade dos muitos contextos específicos de produção. Em 1978 já advertira o crítico e artista Ernesto de Sousa, no texto Performar, “que lavrar este campo não é fácil”[2]. E assim, assumindo a tarefa de configurar uma trama de conceituações teóricas, na articulação culturalmente abrangente e no ensaio de uma narrativa histórica, a Arte da Performance, made in Portugal – uma aproximação à(s) história(s) da arte da performance portuguesa de Cláudia Madeira, apresenta-se como um indispensável conjunto de reflexão histórica e conceitual.

A publicação divide-se estruturalmente em cinco sessões: introdução, três capítulos e conclusão. Partindo de algumas discussões em meio à complexidade da pesquisa, gostaria de trazer alguns núcleos que me parecem relevantes. Na introdução algumas diretrizes iniciais são trazidas, entre outras, o fato “das histórias da arte da performance se terem mantido tão invisíveis” (p.10). E a essa invisibilidade ou apagamento, por diferentes causas, a presente pesquisa é uma resposta eloquente. Outra argumentação diz respeito à aproximação “entre a performance artística e a performatividade social” (p. 11). Neste sentido, as histórias da performance e as histórias de Portugal, ou a de outros campos artísticos em diferenciadas pesquisas, invocam diálogos de vozes, memórias, violências e resistências, seja pelo espelhamento ou refração. Uma sensível imagem desta aproximação entre uma ação vista como operação estética e o contexto de Portugal em 1975 já fora descrita por Ernesto de Sousa[3] à partir de uma manifestação de trabalhadores, observada na ‘coreografia’ de sua marcha, seus distintos uniformes e palavras de ordem.

O capítulo Uma conceptualização crítica à partir do hibridismo discorre sobre uma ampla rede discursiva de entendimento dos conceitos de diferentes autores e com isso afirma um campo marcado pelo hibridismo, sugerindo uma dispersão de olhares e não uma circunscrição estrita. No segundo capítulo busca-se nomear marcos da trajetória da performance em Portugal do início do século XX até os anos 1970. Tais marcos certamente não se apresentam como genealogias fechadas, mas estruturados como uma constelação que possa ser permanentemente reconfigurada. E surge assim inicialmente a figura cintilante de Almada Negreiros e dos artistas surrealistas. Também, entre outros, e à partir da poesia e da música experimental, configuram-se ações enredadas em outras linguagens. Os anos 1960 e 1970 constituem um período caracterizado pelos “corpos efervescentes”[4] ou pelas propostas nas quais “o corpo é o motor da obra[5]” e que, de certa maneira, constituem-se numa presença sempre desestabilizadora na arte. E no pós 25 de abril, corpos não dóceis protagonizaram experiências estéticas de vanguarda. Por fim, sobressai um dado fundamental para a pesquisadora, a presença dos arquivos do artista Manuel Barbosa, como uma fonte determinante para a pesquisa e, acrescento, para a reflexão sobre uma política das memórias da arte.

No capítulo 3, entre outras, são abordadas questões proeminentes das produções de caráter performativo na contemporaneidade e que sinalizam certa elasticidade ou porosidade nos seus conceitos, limites e práticas junto ao teatro e à dança. E muito mais haveria a ser distinguido, como a presença fundamental de Egídio Álvaro, as experiências artísticas ligadas à herança/trauma colonialista ou então o comprometimento de algumas ações com a instauração de uma esfera pública de vivências artísticas[6], como em algumas proposições de Vera Mantero, entre outros. Mas gostaria de finalizar o texto com a artista e coreógrafa Vânia Rovisco, também presente na conclusão da pesquisa. Vânia Rovisco, juntamente com a investigadora Verónica Metello, desenvolveram o projeto REACTING TO TIME: Os portugueses na arte da performance. E que em síntese, é uma pesquisa gestual de performances significativas apresentadas em Portugal e, à partir de um inventário, “retransmitindo-as depois através do seu próprio corpo (da artista) para outros performers em processos de workshop” (147). Além da delicadeza e, ao mesmo tempo, intensidade do arquivo de gestos a ser partilhado, há algo que considero da maior importância. A proximidade desta operação de reincorporação de determinadas performances com as reflexões históricas de Walter Benjamin[7] sugere um olhar atento às narrativas históricas do passado pelos olhos ancorados no presente. E que assim, nesse reexistir e reconstruir do gesto trazido de um outro tempo, mesmo que de forma efêmera, estabeleça uma possível e fugaz permanência de sua potência sensível e crítica. Assim, como também o faz Claudia Madeira através de sua pesquisa e construção histórica tão prementes.

[1] A carta dos artistas e a resposta de RoseLee Goldberg estão na publicação ¿Hay en Portugués?, editada por Regina Melim (Brasil/2013) e disponível em: http://www.plataformaparentesis.com/site/hay_en_portugues/files/hay_dois_online.pdf

[2] Catálogo Ernesto de Sousa – Revolution my body. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p.309.

[3] Idem, p.321-322

[4] Banes, Sally. Greenwich Village 1963: avant-gard, performance e o corpo efervescente. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

[5] Morais, Frederico. Contra a arte afluente: corpo é o motor da obra. Revista de Cultura Vozes (Rio de Janeiro, Brasil). Vol. 1, no. 64 (jan./fev. 1970)

[6] Deutsche, Rosalyn. Agorafobia. Arte & Ensaios. Revista do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais. EBA/UFRJ. no. 36 (dez. 2018)

[7] Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.


Paulo Reis (Curitiba/Brasil – 1962) – Professor do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná. Tem pesquisas ligadas à história da arte brasileira, performance e curadoria. Publicou Arte de Vanguarda no Brasil – anos 60 (2006) e O Corpo na Cidade – Performance em Curitiba (2009).

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