Tartufo de Molière, encenação de Carlos J. Pessoa, Teatro da Garagem/Teatro Nacional S. João, 29 de Setembro a 10 de Outubro de 2021, TNSJ, Porto
Ensaio de Cláudia Madeira
[originalmente publicado no Programa de Sala do espectáculo no TNSJ, disponível aqui pelo Centro de Documentação online]
® Carlos Porfírio: Puro Conceito
A pergunta dirige-se ao espectador do Tartufo apresentado pelo Teatro da Garagem.
Neste espetáculo, o texto de Molière surge quase sem alterações, depurado apenas na sua rima original pela tradução de Regina Guimarães. Mas a encenação de Carlos J. Pessoa transcreve esse jogo rítmico das palavras, para que o espectador não fique preso à musicalidade do texto, através de um meta-discurso urdido na materialidade dos recursos cénicos e cenográficos. Desde logo, desdobra o texto pelos atores, distribuindo-o como um baralho de cartas para que cada um, interpretando frequentemente duas personagens, por vezes até uma feminina e outra masculina, forme uma espécie de equipa estratégica num jogo dramatúrgico em que se luta, e aqui todos lutam, como na vida, pelo poder. Tartufo, na versão cómica que nos chega até hoje, retrata a hybris, presente em todas as tragédias humanas, dessa busca incansável, por isso também sempre ridícula e risível, do homem pelo poder, qualquer que ele seja.
O teatro de Molière, escrito em torno do sistema solar da corte de Luís XIV, não poderia deixar de usar esse riso sonoro que, assentando numa crítica às imposturas do poder e da sedução, não era autorizado ainda a ensaiar, em alternativa, as bases para uma revolução de costumes. Tartufo é o resultado de uma querela que levou a várias interdições e censuras, tanto pela Igreja como pela monarquia, traduzindo-se numa comédia onde (pelo menos aparentemente) se preserva o poder instituído.
Essa disputa pelo poder, que aqui é alimentada a risos, terá por centro de gravidade a riqueza de Orgon e de sua mãe, figuras senhoriais, talvez mesmo o reflexo da realeza, como nos apresenta a encenação de Carlos J. Pessoa. Única personagem sem duplo, Orgon, representado por Sérgio Silva, é aqui retratado como um homem de negócios atual, ensimesmado nos seus próprios truques de poder, muito menos inocentes do que aparentam.
A personagem da mãe será interpretada por Paula Só, que aparece em palco como uma beata que dá voz à tradição de que as aparências devem ser preservadas em nome de uma moral religiosa e, por isso, traz consigo um carrinho de compras cheio de chaveninhas de chá para apaziguar as alminhas. Será esta a personagem que afirmará do invejoso que este é alvo de inveja, o que no (con)texto francês do século XVII universaliza esta condição. No final da peça, a mesma atriz interpretará também a figura do Meirinho que virá repor a justiça, em representação do rei, servindo a todos o chá restaurador da verdade.
À sua volta gravitam as restantes “equipas de atores”, aqui figuradas por duplas de personagens interpretadas por um só ator, traduzindo, na trama tartufiana desta encenação, uma classe ociosa sedenta de favores e gravitando em aparências: a atriz Ana Palma interpretará a mulher de Orgon, Elmira, que se apresenta como uma sedutora balzaquiana, e o irmão desta, Cleanto, o bem-intencionado (há quem afirme que seria a voz do próprio Molière), que não deixará de soar a qualquer coisa de oportunista, uma vez que vive dos favores da irmã que procura acima de tudo preservar; a personagem de Tartufo, o impostor, que encobre sob uma fachada de beato (aqui figurada como guru de ioga) um jogo de bastidores à Don Juan, sedutor (e mesmo empreendedorista, de uma “start-uf ”), e que procurará tomar a casa e a mulher do seu benfeitor, dará lugar à personagem do Senhor Leal, executor da lei, numa dupla de personagens que aqui é assumida como cara e coroa da mesma moeda, na interpretação de Miguel Damião. Mariana, a filha casadoura, rapariga sonsa e choramingona, que nas suas reivindicações nunca sai do seu jogo de conveniências, e Damis, o filho rebelde, à procura de uma revolução ainda não imaginada, têm interpretação de Joana Raio. Nesta trama entra ainda o povo, composto por Valério, noivo de Mariana, que introduzirá a personagem romântica desenquadrada do estatuto social a que procura ascender e que fará dupla com Dorina, a personificação da empregada alcoviteira, interpretadas por Susana Blazer. Esta última será a primeira a perceber as artimanhas de Tartufo, não se calando, ainda que tenha dificuldades em ser ouvida. Nesta encenação, que se expande ao tempo atual das fake news, da pós-mentira e das “start-ufs”, ninguém escapará, portanto, à tartufice.
Estas equipas criam assim uma necessidade de travestimento contínuo, processo auxiliado pela presença de charriots atulhados de roupa em palco e de uma máquina de lavar, junto da qual estão acumulados cestos de roupa suja. A agilidade pedida aos atores, na alternância de falas e no uso de roupagens variadas, que acontecem, muitas vezes, à vista do espectador, sublinha a ligação de tartufo à etimologia da palavra hipokrités, que no grego traduz a ideia do ator que consegue interpretar habilmente várias personagens. Molière tenta apresentar-nos essa habilidade em diversas das suas peças (de Tartufo a D. João, passando por O Misantropo ou O Doente Imaginário, entre outras) como fazendo parte da condição humana, levando mesmo à impostura geral numa sociedade acentuadamente teatralizada e mascarada. Um teatro social que fazia uso de figurinos e de linguagem sofisticados, ao mesmo tempo que se enredava em cornucópias de lutas palacianas num mundo de imposturas, e que ainda assim procurava manter as aparências de uma moral católica, da mesma forma que o perfume francês tentava esconder maus odores.
® Carlos Porfírio: Puro Conceito
Esse ambiente é aqui apresentado tendo por pano de fundo um trabalho de vídeo e sonoplastia, criados por Daniel Cervantes, luz de Nuno Samora e figurinos de Sérgio Loureiro, onde se metamorfoseia um mundo de sujidade ocre, composto por insetos, moscas, baratas, larvas e seres rastejantes de todos os tipos, com dispositivos de limpeza, desde logo a máquina de lavar, os cestos de roupa suja, e imagens de água, escovas de dentes ou de para-brisas, com os seus mecanismos elétricos. Esses mesmos utensílios e suas sonoridades são usados em palco pelos atores, criando os gestos coreográficos do encobrimento: grandes aspersores coloridos servem para “perfumar” o ar, escovas, vassouras e piaçabas servem um trabalho de limpeza sem fim. Uma enorme bola de roupa suja é empurrada por Tartufo, grande escaravelho em palco logo no início da peça, como se o mundo fosse um cesto de roupa suja e o Homem tivesse de carregar a sujidade às costas. Esse cenário dá espaço ao virtuosismo quase malabarista da performance dos atores.
A trama do impostor, tal como nos grandes exemplos trágicos, só poderá ter desfecho através da peça dentro da peça, uma ratoeira ao estilo hamletiano, aqui encenada na intimidade do quarto da mulher experiente que dá assim a ver ao marido, escondido por entre as roupagens e cestos de roupa suja, as intenções de Tartufo. É nos bastidores que a “verdade” se dá a ver e ouvir, mas ainda assim, como é de uma comédia que se trata, são precisas mais algumas peripécias para não dar por garantido de um só golpe o desfecho. Mesmo descoberta a “verdade”, e celebrada a jura de amor entre Mariana e Valério sob os auspícios de um louva-a-deus, a perda de Orgon parece certa, por via de um contrato que ele próprio assinara de abdicar de sua casa, sendo aqui precisa outra artimanha, urdida entre a personagem de Elmira e o Meirinho, para repor a justiça em nome do rei, através de um cerimonial do chá purgante e de uma lavagem coletiva com o detergente “start-ufo”, que vêm repor a ordem das coisas. Num jogo onde a impostura nunca tem um verdadeiro fim, porque a diferença não é grande entre quem sofre a impostura e o impostor.
O repertório teatral que Molière legou, construindo com as suas peças uma espécie de tratado sobre a hipocrisia humana, numa clara inscrição num pensamento filosófico ocidental onde não há uma verdade, apenas a virtuosidade da sua busca, não pode deixar de ser um dos lugares incontornáveis que ajudaram à construção de uma análise sociológica do “ator social” e dos seus jogos dramatúrgicos. Erving Goffman, no seu livro A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias (1959), analisará detalhadamente as nuances da atuação e mesmo das representações falsas na vida, mas também, justamente, a articulação dos atores sociais em equipas que cooperam entre si na encenação de uma prática de rotina determinada em prol das suas estratégias sociais. Pierre Bourdieu escreverá mesmo, nos seus tempos de estudante na Faculdade de Letras da Argélia, um texto na Revue de la Méditerranée denominado “Tartufo ou o drama da fé ou da má-fé” (1959), onde compara duas das personagens mais representativas da hipocrisia no teatro de Molière, Tartufo e D. João. Na sua análise, refere que enquanto este último primava pela subtileza da sua máscara, o primeiro apresentava uma máscara grosseira, na medida em que, pensando enganar todos, apenas se enganava a si próprio, sendo o único visado pela sua mensagem, já que no seu jogo viciado a personagem não ousa optar nem pela liberdade do seu desejo, nem pelo seu dever. Tartufo é o retrato do homem comprometido e, por isso, na expressão de Bourdieu, “rir de Tartufo é ser Tartufo”.
Nesta encenação proposta pelo Teatro da Garagem não estamos longe desse aviso, o de que este riso deve ressoar em nós, porque afinal é a única virtude que nos resta. Se não nos rirmos, teremos perdido a fé nessa verdade que, no Ocidente, desde Aristóteles e Platão até à atualidade, se pensou sempre como impossibilidade.