Estás com a mosca?

Wow, de Sónia Baptista, Culturgest, Lisboa, 13 a 15 de Janeiro de 2022

António Figueiredo Marques

® Raquel Melgue

 

Sónia Baptista oferece-nos um storytelling de corpos deslocados, corpos de deslizamento, com uma ideia de não normatividade – a começar na de belo –, e em que, não sendo propriamente, passa por ser uma sequência de solos, terreno no qual é uma artista frutífera. E Baptista faz-se acompanhar de outras quatro performers: uma violinista (Cire Ndiaye) e, junto ao final, uma breve aparição, além das três figuras principais.

Da mosca ao luto, a peça soma-se ao seu fabulário animal (já antes a raposa, o esquilo, os pássaros), bicho que aparece para comer as fezes (Gaya de Medeiros que surge dentro de um cagalhão), os detritos, e ao qual prestamos sempre atenção. O seu zumbido faz-se presente e perdura, incomoda. Também podemos matar essa mosca ao mesmo tempo que nos desfazemos da história da beleza, da tradição feminina e da concepção. Nada é imaculado, seja Maria, seja Marilyn Monroe, charmosa e perfeita.

Guardaremos bem guardada a história desta diva com Joana Levi, ambas antes de tomarem banho numa atracção de sexo escaldante, lama e cera dos ouvidos. Porque: não, a beleza não é limpa (ou o eros ou thanatos).

Cenas que se sucedem sem um evidente impulsor, senão uma capacidade de efabular: com o corpo, ora elegante, ora aparentemente trapalhão, ora ao encontro umas das outras; e com uma discursividade solta, que aqui ou ali descai no auto-humor já típico da metateatralidade. A linguagem será, novamente, sem um princípio e um fim; e o que somos capazes de enunciar é um fragmento de um grande magma corrente.

E porque se trata de efabular, a contracena entre as três protagonistas é mínima, uma fina teia, quase invisível (porém mais evidenciada quando as performers ficam suspensas no ar, um belo quadro de uma queda estática), suplantada pelos universos de movimento e diegese da subjectividade de cada uma, tão distintos entre si, e acalentados pelo som e pela luz.

É também digno de nota, a finura com que Sónia fala do seu amor/perda e, ainda nesse momento, ao acolher Inês Gonçalves que vem, talvez, em seu auxílio e resposta.

Embora o público não tenha feito forte vibração com os aplausos, Wow dá-nos achas para a fogueira, a nós, mosca curiosa.

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