Será uma tragédia farsesca ou uma farsa com laivos trágicos?, é o titulo do texto escrito pela dramaturgista Cláudia Madeira, investigadora do ICNOVA, para o espectáculo Metamorfoses, a 114ª criação do Teatro da Garagem, com encenação de Carlos J. Pessoa, que esteve em cena no Teatro da Garagem de 24 a 27 de Julho.

Metamorfoses, Teatro da Garagem. © Cláudia Madeira

[texto originalmente publicado na Folha de Sala do espectáculo]

Este livro de Ovídio (Publius Ouidius Naso) que mereceu o rótulo de sem igual, tendo exercido, como nenhuma outra obra da Antiguidade Clássica, influência central na arte europeia ao longo dos séculos, apresenta-se como um longo poema em metamorfose, constituído por quinze livros com cerca de duzentos e cinquenta episódios, onde se misturam essencialmente elementos mitológicos, com origem grega e romana, mas também alguns elementos históricos, com base factual.

As histórias nele contidas possuem uma estrutura fluída, sucedendo-se ininterruptamente e, por vezes, interrompendo-se e sobrepondo-se mesmo umas às outras, fragmentando-se e aproximando-se das formas narrativas atuais. Apresentam figuras e personagens, como é o caso do casal Báucis e Filémon, que atravessam outras obras que integraram já o repertório do Teatro da Garagem, como o Fausto de Goethe e incluem amores trágicos, como Píramo e Tisbe, que deram a Shakespeare o mote para a criação de Romeu e Julieta.

A obra inicia-se no caos primordial da formação do mundo e termina no Império Romano, com a divinização de Júlio César. Entre um ponto e outro desta cronologia imaginária, atravessa as temáticas do eros e do thanatos, vida e morte, criação e destruição, através da plasticidade que Ovídio confere entre as classes taxonómicas animais, vegetais e minerais e que hoje se presta a novas interpretações em torno das questões ecológicas e do antropoceno/ capitaloceno. Há uma constante transformação em novas formas, numa espécie de labirinto do Minotauro, onde não existe necessariamente um fio moral.

Foram escolhidas para esta peça onze episódios-quadros, adaptados e sintetizados a partir das Metamorfoses de Ovídio, a que acrescentámos mais um episódio usando de total liberdade dramatúrgica para refletir o exílio de Ovídio, o tema central explorado por este autor, o amor, nas suas diversas matizes e o destino do homem num mundo em constante metamorfose.

Estes episódios ganharam por título: Génesis, Caça, Amor, Zelo, Arte, Bem Público, Labirinto, Hospitalidade, Morte, Ideal, Rumor, Banquete e apresentam-se numa estrutura dramatúrgica desenvolvida por Cláudia Madeira e que foi totalmente aberta quer à metamorfose da encenação autoral de  Carlos J. Pessoa, quer da improvisação dos actores, incluindo alterações de texto e de sentido nalguns dos episódios, como o da Caça ou do Amor, do Bem Público ou mesmo o da Morte. Na sua encenação a peça ganhou derivas imprevistas, caminhos inusitados, mesclou-se com o magma da actual sociedade do hiper-espectáculo, desde os programas de televisão mais eufóricos, à música pop ou à sexualização desenfreada dos discursos. A própria peça é uma espécie de Minotauro ao modo de Calderón de La Barca, onde não sabemos muito bem a diferença entre o sonho e o pesadelo, entre o sublime e o grotesco, entre o bom e o mau gosto, ou sequer como medir o gosto. Será uma tragédia com acento frasesco ou uma farsa com laivos trágicos? Não conseguimos dar resposta porque sabemos que neste carrossel, o espectador poderá ser afetado por uma panóplia de  emoções onde alguns poderão rir até chorar, outros ranger os dentes,  ficar enfadados, abrir a boca de espanto, ou chorar todas as suas angústias íntimas ou societais. De qualquer modo é um teatro fresco, quase al fresco, um quadro de Verão, de tecidos flutuantes brancos onde se reflectem as cores fabulosas de um arco-íris ainda por inventar e onde haverá sempre um qualquer tesouro escondido a encontrar.

 

Génesis

“No princípio era o caos. Era uma massa informe e confusa, nela amontoando-se as sementes desconexas. Nada conservava a sua forma. Cada coisa opunha-se à outra, num mesmo corpo o frio guerreava o quente, o húmido lutava com o seco, o mole com o duro, o peso com a ausência de peso”.  É com estas palavras de Ovídio, da sua obra Metamorfoses, que começa este espetáculo.

Neste episódio o caos informe dá lugar às formas existentes, entre as quais surge o ser humano moldado à imagem dos Deuses, que ao contrário dos restantes animais olha para os céus.

Este olhar lança-o na cobiça, agigantando-se à procura de poder a qualquer custo. Júpiter percorre a Terra, para medir essa ânsia de poder e apresenta-se como Deus na casa de um homem, que descrente a partir da sua má índole será transformado na sua verdadeira forma de lobo. No Concílio dos Deuses, Júpiter decide castigar toda a humanidade pela sua cobiça, lançando-a num dilúvio, de onde apenas se salvam Deucalião e Pirra, que conseguem com o auxílio dos deuses recuperar a humanidade através de pedras que lançam no chão e que se metamorfoseiam em novos homens e mulheres.

Caça

Este episódio é constituído por duas cenas de perseguições amorosas, na primeira das quais Dafne é transformada em árvore. Na segunda cena, Juno ao olhar para o manto de nuvens escuras que se formou no céu percebe que Júpiter estaria a encobrir os seus amores ilícitos. Juno vai ter com Júpiter e encontra-o no campo com uma vitelinha. Desconfiada pede a Júpiter para ficar com ela que não tem outro remédio senão ofertar-lha. Um jogo de peripécias é desencadeado até a vitelinha conseguir recuperar a sua forma humana. A interpretação cénica de Carlos J. Pessoa conferiu-lhe humor, eros e atualidade.

Amor

Este é o episódio dos amores desencontrados de Narciso e Eco. Eco apaixona-se por Narciso mas este apaixona-se pela sua própria imagem. Sem poder consumar o seu amor, perece e transforma-se em narciso. Na extensão cénica Eco sofre o trauma da rejeição e da morte do seu amado com um distúrbio psíquico que a faz atentar sobre o seu próprio corpo, em cortes que visibilizam as suas cicatrizes.

Zelo

Alcítoe e as suas irmãs dedicam-se ao seu trabalho de tecelagem mesmo no dia das celebrações ao Deus Baco, infringindo a pausa festiva e obrigatória. Afirmam que este não é filho de Júpiter e desdenham das mulheres que celebram os seus rituais. Para ocuparem melhor o tempo, decidem contar histórias enquanto trabalham nas suas tecelagens. Uma delas conta a história de Píramo e Tisbe, um amor proibido, que mais tarde será inspiração para William Shakespeare na sua peça Romeu e Julieta. Os apaixonados fogem de casa dos seus pais mas a morte apanha-os. No final da história, as irmãs sofrem a fúria de Baco que por castigo da sua descrença faz enverdecer as suas telas, como videiras, e transforma as irmãs no crepúsculo do dia em morcegos.

Arte

Aracne é mestre em tecelagem. Palas inveja-lhe o engenho e ata-lhe ao pescoço um laço que a deixa pendurada. Condoendo-se com a sua dor decide deixá-la viver mas transforma-a em aranha, dando-lhe por destino eterno a sua arte de tecer.

Bem público

Uma deusa com sede aproxima-se de uma fonte pública, mas é interditada de beber a sua água pela gente da terra que lhes diz que a água é privada.

A encenação deste espetáculo traduziu a cena num coro que se insurge contra a partilha do bem público e que grita em uníssono “A água é nossa”. A deusa transforma-os em rãs para viverem para sempre dentro da água que dizem ser sua. O hipertexto cénico decidiu exterminar as rãs por tomaram essa posição contra o bem publico.

Labirinto

Cruzam-se neste episódio os castigos incutidos pelo Rei Minos ao Minotauro, ser monstruoso, metade-homem, metade-touro, fruto dos amores ilícitos da deusa sua mulher com um Touro, mas também ao arquiteto, de nome Dédalo, que construiu o seu labirinto de modo a que ninguém dele conseguisse sair. Teseu para libertar a cidade do tributo para alimentar o monstro, mata o Minotauro e encontra a saída com a ajuda do fio de Ariadne.

Por castigo desse erro o Rei Minos decreta a Dédalo, o arquiteto, o exílio.

Metamorfoses, Teatro da Garagem. © Cláudia Madeira

Não podendo percorrer o espaço terrestre, Dédalo constrói asas para si e para o seu filho Ícaro. Ícaro na sua voragem voa cada vez mais alto, o sol queima-lhe as asas e o seu pai vê-o cair das alturas e ganhar sepulcro na ilha de Icária.

No centro do labirinto todos os seres podem enredar-se no labirinto da híbris, signo do excesso, da desmedida, da arrogância, do orgulho exagerado e da insolência.

Hospitalidade

Neste episódio Júpiter percorre de novo a Terra, sob a forma humana. Bate a todas as portas mas nenhuma parece abrir-se para lhe dar abrigo. Até que  um casal de idosos, Filémon e Báucis, lhes dá hospitalidade.  Para revelar a sua verdadeira forma divina, Júpiter enche milagrosamente os copos cheios de água com vinho. Grato pela hospitalidade concede-lhes ainda um desejo. Estes pedem para morrer ao mesmo tempo e transformam-se em árvores.

Morte

Orfeu desce ao mundo dos mortos para recuperar a sua jovem mulher que morreu em consequência da picada de uma cobra venenosa. Os Deuses condoem-se da sua dor e permitem que ele a leve, com a condição de no caminho a percorrer não olhar para trás. Com medo de perder Eurídice no caminho, distrai-se e ao olhar para ela vê-a de novo deslizar para a morte. Morto em vida pretere todas as mulheres por esse amor perdido, as Ménades furiosas por não conseguirem seduzi-lo em vida, arrancam-lhe cada membro do seu corpo dando-lhe assim a morte ambicionada.

Ideal

Pigmalião apaixona-se pela estátua de uma mulher que constrói com as suas próprias mãos. Pede aos deuses que transformem o mármore em forma humana. Os deuses acedem e assim é consumado o amor ideal.

Rumor

Neste episódio é revelado o segredo da existência de um sítio no centro da terra onde vive o rumor. Escolheu uma casa sem portas, com mil aberturas, construída de bronze ressonante onde todas as palavras se escoam para lugares inusitados.

Banquete

Este é o único episódio que acrescentamos usando de total liberdade dramatúrgica para refletir o exílio de Ovídio, o tema central explorado por este autor, o amor, nas suas diversas matizes e o destino do homem num mundo em constante metamorfose. É preciso olhar para cada passo que damos com cuidado, talvez ainda haja deuses que olhem por nós.

 

FICHA TÉCNICA E ARTÍSTICA

ENCENAÇÃO: Carlos J. Pessoa
DRAMATURGISTA: Cláudia Madeira
CENOGRAFIA: Herlandson Duarte
FIGURINOS: Carlota Lagido
SONOPLASTIA E OPERAÇÃO DE SOM: André Carinha
DESENHO E OPERAÇÃO DE LUZ E VIDEO DE CENA: Carlos Vinícios
INTERPRETAÇÃO: Ana Lúcia Palminha, Célia Teixeira, João Estima e Rui Maria Pêgo
FOTOGRAFIA, VÍDEO E DESIGN GRÁFICO: Vitorino Coragem
COMUNICAÇÃO: José Grilo
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Raquel Matos
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Luís Puto e Rita Soares
ASSISTÊNCIA DE ENCENAÇÃO EM CONTEXTO ESTÁGIO: Mariana Rebelo

Apoios Câmara Municipal de Lisboa, EGEAC, Junta de Freguesia de Santa Maria Maior
Financiamento Direção-Geral das Artes, Governo de Portugal | Ministério da Cultura

 


 

Cláudia Madeira. Professora Associada com Agregação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Coordenadora do grupo de investigação Performance & Cognição do ICNOVA NOVA FCSH e investigadora do grupo Teatro e Imagem do Centro de Estudos de Teatro da FLUL. Realizou o pós-doutoramento intitulado Arte Social. Arte Performativa? (2009-2012) e o doutoramento em Sociologia sobre Hibridismo nas Artes Performativas em Portugal (2007) no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. É autora dos livros Performance Art in Portugal (Routledge 2023), Arte da Performance Made In Portugal (ICNOVA 2020), Híbrido. Do Mito ao Paradigma Invasor? (Mundos Sociais, 2010) e Novos Notáveis: Os Programadores Culturais (Celta, 2002), entre outros. Escreveu vários artigos sobre novas formas de hibridismo e performatividade nas artes. Leciona na licenciatura e mestrados de Artes Cénicas e Comunicação e Artes do Departamento de Ciências da Comunicação na NOVA/FCSH. Desde 2017 tem vindo a desenvolver trabalho de dramaturgia em colaboração com o Teatro da Garagem O Canto do Papão Lusitano (a partir de Peter Weiss, Lisboa e Bragança 2017); Teatro de um Homem (L)ido (a partir do livro de E.M. de Melo e Castro, Lisboa e São Paulo, 2018); Outra Tempestade (a partir de Shakespeare e Césaire Lisboa e Cabo Verde, 2023), Fausto (a partir de Goethe, Lisboa, 2024). Recentemente participou nas conferências-performance com dramaturgia coletiva: Tempestade Real (Florianópoles, Agosto 2024) e Crazy Kales (Barcelona, Novembro 2024).

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