Nota de entrada
Este ensaio segue sua narrativa a partir da minha experiência em terras indígenas, mais precisamente no território dos povos Krahô[1], no coração do cerrado brasileiro. Estive ali em três momentos distintos, março, julho e agosto de 2024, no âmbito da minha pesquisa de doutorado, cujo desejo era conhecer de perto o Hotxuá, o palhaço sagrado desse povo. É da primeira travessia que esta escrita se ocupa. Falo do impacto da chegada, quando os pés ainda tateiam o chão sem saber ao certo o que os sustentam, e os olhos tentam decifrar uma existência pautada noutro tempo: fora do tic-tac do relógio.
Não sabia como seria e nem o que me aguardava. E, talvez por isso, cada gesto, cada silêncio, cada olhar, reverberou em mim com força inaugural. Não quero aqui traduzir um mundo, mas narrar o espanto de tocá-lo com a pele da atenção. Vamos embarcar nessa experiência? Apertem os cintos, ou melhor, apurem os sentidos.
Abertura: Uma cena em travessia
Fui à aldeia Manoel Alves Pequeno com o corpo aberto. Sabia, mas também não sabia exatamente o que buscava. E talvez tenha sido justamente essa tensão entre o saber e o não saber que me permitiu ser atravessada por aquilo que não se planeja. Minha escuta se afinava mais com os ventos do cerrado e com os silêncios entre as falas, do que com qualquer método pré-definido. Fui como artista, palhaça e pesquisadora. Mas também como corpo estrangeiro, visivelmente outro, diante de um mundo distinto, que me receberia com generosidade, embora com lógicas que não me pertenciam.
Muito cedo compreendi que ali, mais do que olhar, eu seria olhada. Havia algo na minha presença que chamava atenção: talvez o cabelo, talvez o gesto, talvez o fato de ser mulher sentada entre homens. Não importava tanto o motivo, importava o modo como esses olhares me atravessavam. E foi nesse atravessamento que comecei a entender que, ali, o olhar é também linguagem. Um gesto de inclusão e também de distância, de escuta, mas também de recusa.
Os cineastas João Salaviza, português, e Renée Nader Messora, brasileira, que vivem parte de suas vidas em terras indígenas, junto aos povos Krahô, concederam uma entrevista ao jornal Público, de Portugal, sobre o filme Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018): “Olhamos os índios. E eles olham-nos de volta”. A frase ecoou em mim com uma força imanente. Porque ali, naquela reunião, naquela aldeia, era isso o que acontecia: eles nos olhavam. E esse olhar não era passivo. Era um ato. Um gesto político. Um espelho que, ao nos devolver, desorganiza as nossas certezas.
Ser olhada por aqueles olhos, tão ancestrais, era adentrar uma cena cuja dramaturgia eu desconhecia. Ainda assim, de algum modo, eu a integrava. Era como um palco onde o olhar do outro nos observa, mas também nos revela.
A assembleia política: entre olhares e lugares
Durante minha permanência na Aldeia Manoel Alves, fui convidada a acompanhar uma assembleia política entre os homens da aldeia. Era um encontro importante, convocado pelo Cacique Ismael Ahpracti Krahô, e reunia lideranças locais para discutir questões e decisões da comunidade. Não compreendia ao certo o conteúdo que ali seria tratado, mas aceitei o convite com atenção e cuidado. A escuta, mesmo atravessada pela língua que não domino[2], me interessava: queria observar a cena, os gestos, os modos de presença daquele povo neste primeiro encontro.
Cacique Ismael Ahpracti Krahô
A sessão aconteceria ao ar livre. Nomear aquele lugar de “espaço público” seria impor uma moldura inadequada. O que ali se desenhava obedecia a outra lógica de estar no mundo, uma abertura que atravessava casas, corpos, gestos e o chão compartilhado. O espaço da reunião era aberto, assentado sobre areia batida, com algumas árvores oferecendo finas sombras sob o sol escaldante que caía sobre todos nós. Aos poucos, os homens iam chegando e dispondo as suas cadeiras em fileiras, como se formassem uma espécie de auditório. Ao lado oposto, uma meia-lua de assentos formava um arco. Foi ali, ao lado do cacique, que me sentei, obviamente que não por minha iniciativa, mas por seu convite direto. Esse gesto, que poderia parecer simples, me inscrevia na cena de forma visível. Não era qualquer lugar. E logo me dei conta: ser colocada ali também me colocava sob olhares.
Entardecer visto da cerca de Ahpracti
O palco aldeia: performatividade do encontro e o olhar que reinventa
A aldeia não é apenas um lugar no mapa, é um palco onde se encena uma complexa dramaturgia de presenças, olhares e significados. Sentar ao lado do cacique, como convidada especial, era para mim uma inserção inesperada nesse palco político e simbólico. Ali, o corpo e o gesto são comunicadores silenciosos, e o olhar assume um papel de protagonista.
Ser observada pelos homens da reunião, embora um simples ato, era um exercício de poder e também de reconhecimento. O olhar deles me atravessava, me situava e me transformava. Eu, que venho das artes da cena, reconhecia nesse movimento a essência do fazer teatral: um jogo vivo entre quem apresenta e quem assiste, entre o ato e a receção. A reunião se desdobrava como uma performance, onde o discurso era coreografia, o silêncio também era fala, e a atenção dada a cada palavra e gesto tecia uma coreografia invisível.
Essa experiência dialoga profundamente com o pensamento de Salaviza e Messora, que refletem sobre o ato do olhar indígena em seu texto para o jornal Público. Eles afirmam que o olhar dos indígenas não é passivo, é um olhar que responde, que devolve e que interfere na dinâmica do encontro. Essa troca ativa cria uma relação de poder compartilhado, onde ser visto é também uma forma de ser reconhecido e, ao mesmo tempo, desconstruído.
Na aldeia, eu não era somente pesquisadora ou visitante: a minha presença performava um papel, ora visível, ora velado, num ritual político e social que ultrapassa o que a linguagem verbal pode conter. A vulnerabilidade se intensificava não apenas pelo fato de eu não compreender nada do que era dito, mas sobretudo por perceber que ali se habitava outra cosmogonia, outra lógica, outra maneira de perceber e organizar o mundo. Como palhaça, encontro ressonância nesse espaço de “estar à deriva”, onde o não saber abre brechas para a invenção e o encontro. Estar ali, ser vista e olhar de volta, era participar de uma dramaturgia complexa e ancestral, que me convidava a deslocar meus modos de ser e de existir em cena, para além dos palcos convencionais.
A palhaçaria é um exercício constante de vulnerabilidade e potência, de se mostrar frágil e, ao mesmo tempo, poderoso na entrega ao instante. Da mesma forma, naquele espaço abeto e coletivo, as lideranças desempenhavam seus papéis com a consciência do poder que cada gesto e palavra carregava. E eu, mesmo enquanto visitante, era chamada a participar dessa coreografia, não com palavras, mas com a simples existência do meu corpo e do meu olhar.
O olhar do outro, que tanto a palhaça quanto o indígena conhecem como um campo de energia e negociação, é uma ferramenta para a criação coletiva do sentido e do vínculo. Nas vivências de Salaviza e Messora, o olhar indígena é uma forma de presença que questiona e responde, que coloca em cena a alteridade e o reconhecimento mútuo. Na palhaçaria, esse olhar é combustível para o encontro, e quando ausente, a cena perde sua vida.
Mas, naquele contexto, apenas estar não era suficiente: era preciso dizer porquê. Fui convocada a falar. Diante dos líderes reunidos naquele espaço aberto, onde cada gesto tem peso e cada palavra carrega intenção, precisei dizer o que me levava àquela visita, por que motivo, o que eu fazia e de onde vinha. Havia ali uma escuta atenta, mas também uma sondagem: quem é essa que pisa este chão? Embora a minha chegada tivesse o respaldo de pessoas conhecidas por Ahpracti, e eu não viesse do anonimato, ainda assim era necessário me apresentar. Cada pessoa que entra na aldeia traz suas buscas, seus caminhos, e eles queriam saber o meu. Nomear minha presença ali era reconhecer que estar naquele território exige responsabilidade e clareza de intenção.
E, portanto, expliquei. Mas não sei se o que disse correspondeu ao que realmente me levou até ali. Talvez fosse menos uma resposta, e mais uma tentativa de me deixar ser olhada, sabendo que, naquele lugar, a pergunta nunca se esgota.
[1] Trata-se da Aldeia Manoel Alves Pequeno, localizada no município de Goiatins, estado do Tocantins, no cerrado brasileiro.
[2] Os Krahô constituem um dos povos de língua timbira, pertencentes ao tronco macro-jê.
Pôr-do-sol no terreno de Ahpracti
O quotidiano da secagem de roupa, entre árvores. Aldeia Manoel Alves Pequeno
Casa tradicional na Aldeia Manoel Alves Pequeno
Casa de Ahpracti, convivência familiar.
Ponto de encontro de onde todas as atividades na aldeia partem
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Para leitura paralela, deixamos a sugestão do artigo de Lisa Nelson “Diante dos teus olhos” (tradução de Sílvia Pinto Coelho), dois olhares distintos no contexto e na técnica, sobre ver e ser visto.
Miriam Freitas é atriz, palhaça, produtora e doutoranda no ICNOVA – FCSH, UNL. Dedica-se ao estudo da expressividade do corpo e das potencialidades criativas do riso, nos contextos espetacular, cerimonial e humanitário. É também investigadora do Coletivo MÓ (Brasil) e tem explorado a relação entre o corpo, o riso e os vínculos afetivos, integrando práticas de Butoh, LUME Teatro e palhaçaria.