Ciclo de Solos Este é o Meu Corpo, Mónica Calle, Casa Conveniente, 18 a 29 de novembro de 2020, Teatro Nacional São João, Porto
Ensaio de António Figueiredo Marques
[ensaio originalmente publicado no Programa de Sala do ciclo apresentado no TNSJ, disponível aqui pelo Centro de Documentação online]
1.
Este é o Meu Corpo: o que parece uma simples enunciação deíctica (eis, aqui está, vede) será também um manifesto e um convite. Manifesto de presença e existência: como um traço vertical de identidade. E um convite aos sentidos, coexistência: um traço horizontal de partilha. De uma frase nasce um corpo de trabalho, e de um corpo de trabalho projeta-se uma frase. Desta frase brotam, à partida, dois caminhos: se este é o meu corpo do qual eu falo, entretece-se a relação dupla e ambígua de observador e observado. E este poderá ser o âmago do género solo: o performer enquanto objeto e sujeito, sem fuga; vincados e convergentes, daí o carácter dialógico do chamado solo. O corpo individual que irremediavelmente interpela. Assim, tentando não chamar a mim um male gaze, eu respondo: Este é o teu corpo, habitação, nossa casa, nosso desejo.
O monólogo dramático, algo com uma historicidade acumulada, pelo menos desde o século XIX, conserva um certo lirismo (veja-se A Virgem Doida e a sua paixão na palavra) e virá também a adicionar a camada romanesca, na sua capacidade de contar histórias (Os Meus Sentimentos, no seu fio condutor tanto discursivo como narrativo). O solo serve(-se) ainda (d)os artifícios pós-modernos, como des/personalização, espelhamento, autorreflexividade e crítica das definições balizadas. Mais do que autobiográfico ou intervenção stand-up, o género enceta uma exploração desamarrada, simultaneamente ancorada nos antípodas do fazer teatral.
Neste ciclo, uma intensa maratona: Virgem Doida (primeira apresentação em 1992, fundadora de uma certa ideia de Casa Conveniente) é um espetáculo onde o texto, embora não do género dramático, é matriz. O poema de Arthur Rimbaud é o horizonte sobre o qual se constrói a cena e a voz proferida. Rosa Crucificação (2019), com vaga inspiração em Henry Miller, reconstrói um clube de libertinos onde se tenta encaixar o puzzle dos vários eus através da libertação pelas sexualidades. Partindo da leitura do romance de Dulce Maria Cardoso, Os Meus Sentimentos (2013) cria uma espécie de danceteria, que é também uma caixa negra, onde extravasar e celebrar o encontro de corpos, especial requinte em tempos de covid-19. Rua de Sentido Único (2002) afunila o papel da receção em apenas dois espectadores e uma cama, antecedido por um copo num bar.
2.
Corpo hoje, talvez lucho, talvez isolamento, corpo higienizado, corpo perigoso, sempre e mais. Todos estes quatro corpos são magnetismo, vislumbre, expetativa, solicitação, animal e divino. São corpos com disposição e com vagar, mesmo que com violência e velocidade. Porém, de forma distinta nos são oferecidos em cada performance, cada um ocupando um lugar na história da companhia e da atriz. A Virgem ocupa um corpo telúrico e túrgido. Embora profira “Já não sei rezar”, faz uma oração de terra e água: um chão terreno, rugoso e textural que roga uma prece à transcendência, através de uma toada de ondas como palavra. Rosa procura um corpo de pertença e de luxúria, exposto e diáfano. É um corpo que quer levar as marcas físicas, concretas dos outros corpos com que se cruza e priva. Já não é um corpo incógnito, é um corpo que se apresenta Mónica, António, Danielle, Carlos… Em Rua, pressentimos um corpo revelado no encontro e que nos toca, sob autorização. Sorrateiro, é um corpo que nos conta, antes, o que a seguir vai acontecer aos três anónimos escolhidos. Temos ainda um corpo em extensão, corpo em tensão, em Sentimentos. Corpo que se confunde com o livro, um livro a ler um corpo, e que respira através da biologia dos pulmões.
Cada corpo contém e inventa a história de cada solo, revisita e rescreve: quando foi feito, o seu período de transformação. De fora – no fora possível – nunca o saberemos senão com palavras vãs.
Destituída a quarta parede, e sempre convocada, o espectador não pode senão ser extraordinariamente implicado, chamado a jogo. Se isso é evidente em Rosa Crucificação, porque quem observa é obrigado a fazer escolhas, a quem fala a Virgem: a deus ou a mim, na plateia?
O clima voyeurístico e de intimidade engendra o papel de cúmplice naquelxs que assistem: são deus, amante, confessor e até transeunte ou engate anónimo. Quer interpelados pelas sensações e visões, quer nos perguntem o nome próprio, quer mostremos o nosso corpo na pista de dança, ou ainda subamos para um quarto com um(x) estranhx, somos presença e sentimos o desconforto – algures deixámos o consolo do fora de cena, e não sabemos como. Ao mesmo tempo, revemo-nos numa imagem refletida, somos seduzidos por uma pulsão inominável. E recorde-se, como ilustra Barthes,1 que o desejo está no entrever por entre a roupa e a pele. Também ao espectador cabe o papel de observado-observador: no autocarro, à janela, no jardim, ao espelho. A elítica palco-vida-quotidiano abre-se ao ponto do segredo.
3.
Se no primeiro solo (Virgem) vemos algo a querer despontar, ainda ancorado num universo ficcional feito do encantamento da palavra, com o segundo (Rua) estatelam-se as regras de separação entre vivido, imaginado e tempo presente, quando três desconhecidos habitam, por instantes, o mesmo escuro. No terceiro (Sentimentos), voltando ao fôlego do texto, agora extensivo, entrecruzam-se os regimes de escrita e de oralidade, e sobrepõem-se o cosmos literário e a mão que segura o livro; liquefazem-se numa metalepse rumo a uma festa. E derradeiramente, no quarto (Rosa), o espectador é cocriador, coparticipante, assiste, intervém, até a disposição de todos os corpos é comunicante.
Nesta cronologia, a performance avança em direção ao espectador, que já não o poderá voltar a ser, agora cúmplice, agora visível; evolui de uma teatralidade para o acontecimento, esta coisa incerta e vaga do aqui e do agora, despojando-se do verbo, da personagem, dos limites e do pudor. Uma saída do texto para regressar ao corpo, veículo. Contudo, nunca se abandonará a linguagem, cada um dos solos com o seu aparelho próprio: o discurso, em Virgem, pela sua capacidade de construir, edificar personas, de invocar e conjurar; o sussurro, em Rua, com o tom de afeto, proximidade e fragilidade, antes de se partir, para em seguida se desprender; a fonação, a caixa torácica de Calle presentifica a leitura, o objeto livro, em Sentimentos; o fluxo de ar pulmonar, carnal, é-nos dado a ver, a sentir, percorrendo mamas, costelas, músculos e língua, a história e os pensamentos de Violeta em expiração nos tendões do pescoço; o não dito, o inter-dito, não apenas o que não se diz, mas o que a cena fala na sua nudez, os brinquedos e acessórios sexuais, a roupa encenada, uma codificação iniciática, muda e hierárquica. É esta linguagem em Rosa que enlaça atriz e público, e público entre si, pelo que, falando, se não diz.
Eis um corpo que se projeta, que vai além daquelas quatro linhas: deixemos essa linguagem corpórea continuar uma conversa com outros artistas, solta e ao sabor da memória, como as cerejas. Virgem dialoga com Acabar em Beleza,2 de Mohamed El Khatib, ambos a reformulação da promessa do amor, a saudade da perda com um interlocutor ausente, sendo um carnal, outro filial. A cama com três corpos abrigados em Rua conversa com a bela_adormecida,3 de Diana de Sousa, em que se trocam os papéis de passivo e ativo na cama: quem se dá a ver e quem oferece o olhar. Já Sentimentos encena o livro, objeto também teatralizado em Se Eu Vivesse Tu Morrias.4 Pode o teatro estar dentro de um livro? Contudo, o livro de Dulce Maria Cardoso permanece um fólio na mão de Mónica, e na produção de Castro Caldas é um potencial performativo que se transforma em outros meios. O corpo erótico e sexualizado em Rosa é uma dádiva, é cru, ao passo que em Triple Threat,5 o corpo de Lucy McCormick penetrado com dildos é uma citação, ou ainda, é uma remediação irreal.
O excesso do corpo hoje esconde um défice de corpo. Corpo potência, corpo mediatizado, corpo proletário, corpo urbano. Será que só aos 20 anos é que nos podemos despir em público? Por isso, aqui nos surge um corpo com expressões e vestígios, corporeidade vivida e com história: um corpo de 54 anos, hoje.
O corpo da mulher, lugar de contemplação e de intervenção, locus da teoria da arte e da teoria política, irrompe como um corpo edifício, também Aquarius,6 contentor e portador.
De que forma as marcas do tempo, da fertilidade, do esplendor ditam o desígnio do desejável? Não são apenas os corpos eternamente jovens e os corpos cuidados que se podem autorizar à volúpia, à sensação, à crise. O que seria uma Virgem gorda, uma Violeta bipolar, uma Mónica transgénero? Uma Mónica aos 74 anos (quem performar o corpo) só pode fazer o ciclo Este foi Outrora o Meu Corpo? Eu quero saber que as mamas e as nádegas descaídas existem, que o tempo moldou, que as potências do corpo transcorrem. E pergunto-me ainda se as manifestações que o feminino des/constrói não modificarão também os pressupostos da prisão masculina. E tudo isto são já categorizações ultrapassadas – e vigentes.
4.
Talvez estes solos existam no momento da morte da personagem, daí que as produções mais recentes se iniciem com “Olá, eu sou a Mónica” – retirando o apelido que nos lega a carga da herança. Nesta frase reside ainda a viragem para terrenos performativos, por contraste com a ficção teatral, enfrentando os problemas pós-modernos de definição de género.
Fazer um solo significa – e não esqueçamos custos, recursos e precariedade na produção da arte – um tal mergulho no trabalho autoral, em que uma dada dramaturgia do real recobre o privado e o público, o pessoal e o coletivo, que vale a pena indagar neste caso: onde termina Mónica, Casa Conveniente, Cais do Sodré, Chelas, e começa José Miguel Vitorino, Sérgio Azevedo, Prémio Isabel Barreno e SPA, exclusão de apoios estatais, para nomear apenas alguns nomes e episódios.
Este mergulho de quase 30 anos (1992-2020) significa uma criadora apropriar-se do seu passado, resgatar perguntas, tomar conta de um vasto corpo de trabalho, reunir texto de palco, partituras, mudanças profissionais e pessoais. E tudo isto só existe secretamente em palco porque está debaixo da pele nua. Os acontecimentos ficam agarrados às sensações. Guardamos a memória, que não é uma tessitura do factual, mas do que reimaginamos.
Refabricar a memória porque, na verdade, a performance é o que permanece.7 É um movimento ontológico de inquirição de memórias, experiências, averiguando o que é válido hoje, que camadas foram despidas, o que surgiu de novo. E assim arrepiar caminho. Pessoalmente, guardo na minha memória como uma oferenda as palavras de Mónica, “Como é que se recomeça?”, numa apresentação de Rosa no espaço Mise en Scène. Recomeça-se no meio da inevitabilidade, do medo e da excitação.
O passado é algo que é próprio, mas já outro também: o feitiço rimbaldiano Je est un autre. O passado é como uma contrafação. Vemos não apenas Mónica Calle, mas acedemos a um universo autoral de tentativa e erro. Julgo que não será excessivo dizer que estes solos e a sua rescrita participam nos marcos da história do teatro português.
Tal rescrita afirma a experiência da perceção do tempo, contra a sua desintegração face ao aceleramento das sociedades contemporâneas do explicativo e do imediatismo. Em especial, este ciclo torna presente a contingência destes solos em diálogo com as três décadas decorridas, insufla nova vida ao passado, atualizando estéticas e o questionamento sobre as vivências e o próprio teatro. Ao restituir o tempo exercido nos corpos, permite-nos construir uma temporalidade subjetiva na medida em que oferece ao público, na contracorrente televisiva, o enigma, o mistério e, como tal, a capacidade de efabulação.
Há um qualquer paradoxo na atriz/ator, certamente em comum com outros ofícios, um júbilo na exposição e um fascínio da existência secreta. O solo funda mais essa vertigem, nessa totalidade de palco, uma queda estrondosa na entrega inaudível, abandono desfeito de explicações. E a necessidade de um solo pede como resposta a resistência coletiva, a vitória do menor que é o Ensaio para uma Cartografia.8 O trabalho de Mónica Calle assenta na relação entre o fugaz e o duradouro, um isolamento feito de dádiva, pelo que nada fica nunca fechado. Um solo será sempre um perigo desmesurado, nada nos pode esconder, ninguém em nosso socorro. Todo o solo resplandece da vontade expressa de estar em risco, de nos fazermos vulneráveis.
Este ciclo é um espaço entre luz e sombra – não é à toa que uma linha de pesquisa recente da encenadora corresponde exatamente à ideia de um Escuro que te ilumina –, entre conhecer e desconhecer, percorrendo os lugares de espanto e incerteza.
Este será sempre um corpo enigmático da dúvida, da dor e da celebração, uma busca pelo amor, pela possibilidade de aceder aos outros corpos e sensações, redescobrindo incessantemente o meu próprio.
Lisboa, 29 de novembro, 2050
Querida Mónica,
28 anos se passaram desde a última carta. Olho para trás e penso naquele ciclo de solos interrompido. Via a tua energia, ergueres-te em bicos de pés, à beira de encangalhar. Ainda tenho aquele elástico dourado, sabias?
Um hiato até aqui?
Já antes me tinha apercebido de que a carta te assenta bem (ou será antes a mim?9) e se havia pensado que a carta serve como um correlato de espetáculo, agora sei: a carta está para o solo, de mim para ti, só o selo é garantido, o destinatário e a chegada em aberto, como queria Derrida. Os solos, cujo destinatário é o eu, uma carta, são o gesto performativo para te alcançar e tocar no ombro: “António?”
Se esta carta segue, é porque um de nós já não está cá. Todas as vezes que não te disse não foi porque não quisesse, foi porque sempre me pareceu mais genuína uma ausência do que uma confissão.
Recordo-me tão bem do teu solo seguinte, abordavas novamente o corpo, mas através da perda dos sentidos. Terrível o que prefiguraste. Maravilhoso como propuseste o mesmo espectador para diferentes eus. Sempre o paradoxo da profunda solidão. Pertença, salvação irreparável. E o corpo que emerge.
Despeço-me, um beijo,
António
1 Barthes, Roland (1980), O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70.
2 El Khatib, Mohamed (2017), Acabar em Beleza, enc. Mohamed El Khatib, 2017, Zirlib, apr. Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa.
3 Sousa, Diana de (2019) bela_adormecida (versão duracional), enc. Diana de Sousa, ORG.I.A/Self-Mistake, apr. LARGO Residências, Lisboa.
4 Castro Caldas, Miguel (2016) Se Eu Vivesse Tu Morrias, texto e enc. apr. Culturgest, Lisboa.
5 McCormick, Lucy (2016) Triple Threat, enc. Lucy McCormick, 2016, encomenda de hÅb and Contact for Works Ahead, com Soho Theatre, apr. Culturgest, 2017, Lisboa.
6 Mendonça Filho, Kleber (2003), Aquarius, longa-metragem de ficção. CinemaScopio SBS Productions, Brasil.
7 Schneider, Rebeca (2011), Performing Remains: Art and War in Times of Theatrical Re-enactment, New York, Routledge.
8 Calle, Mónica (2017), Ensaio para uma Cartografia, enc. Mónica Calle, Casa Conveniente, apr. Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa.
9 Marques, António Figueiredo (no prelo), “Carta-performance: pensamento artístico e mise-en-scène enunciativa”, Sinais de Cena, Lisboa, Orfeu Negro.
António Figueiredo Marques é investigador no ICNOVA, grupo Performance & Cognição, e LEC – Laboratório de Experimentação Cénica. Bolseiro FCT com um projeto intitulado “Dramaturgias não narrativas: E quando um espetáculo não conta uma história” no âmbito do doutoramento em Ciências da Comunicação, especialização em Comunicação e Artes, NOVA FCSH.
Com interesse nas áreas dos Estudos de Performance e Media e Comunicação, quanto a dramaturgias, linguagem, narratividade e performatividade. Membro da ESTAP desde 2019. Enquanto performer destaca as formações com Mónica Calle, Miguel Moreira, Tiago Vieira, Renato Ferracini (Lume Teatro, BR) e Yael Karavan (UK). Aspira à vitória do menor.