Abrindo Crateras
de Ana Pais
Até que um Dia Deus é Destruído pelo Extremo Exercício da Beleza, peça de Vera Mantero e convidados, estreada a 9 de Novembro de 2006, le Quartz, Brest.
(texto publicado em Ritmos Afectivos nas Artes Performativas, gentilmente cedido para a inauguração da CRATERA)
E é necessário, se quisermos estar realmente e verdadeiramente vivos, é necessário falar e ouvir ao mesmo tempo, fazer as duas coisas, não como se fossem uma coisa, não como se fossem duas coisas, mas fazê-las, se quiserem, como o motor a trabalhar dentro do carro e o carro em andamento, são parte da mesma coisa. (Stein 1988. Tradução minha)
Fazer passar os afectos: é isso que parece gerar brilho. (Rolnik 2006)
Ao fundo, a solidez esférica de um meteorito repousa. Imóvel na penumbra, ocupa com a sua materialidade concreta a direita do palco vazio. Recupera do embate na superfície da Terra (ou na de outro planeta?). Quando o público entra na sala, os seis performers já estão em cena, iluminados. Sentados numa linha de cadeiras à boca de cena, encaram de frente a plateia, com uma atitude alegre e sorridente que se manterá até ao final do espectáculo. Observam o espaço em torno, os espectadores que chegam, por vezes, olhando-os directamente. Estão prontos para a acção. Embora descontraídos, numa postura próxima da que se tem no quotidiano, os corpos tonificados contrastam com os figurinos excêntricos e insólitos, que os individualizam: as plantas verdes que irrompem do fato branco de Pascal Quéneau, a capa de zorro de Loup Abramovici, o chapéu de bruxa de Marcela Levi, o colete de caracóis castanhos que se confunde com os caracóis verdadeiros de Vera Mantero, o chapéu e o casaco de plumas de Antonia Livingstone, o kilt e as sandálias romanas de Brynjar Bandlien. Depois de um longo silêncio, os performers inclinam-se ligeiramente em direcção à plateia e perguntam em uníssono: aaaaaare weeeeeee readyyyyyy?, demorando-se excessivamente numa sílaba de cada palavra. Longa pausa.
Originados pelo embate entre corpos celestes, os meteoritos são combinações de planetas e asteróides que atingem a Terra vindos do cosmos, atravessando a atmosfera a altíssima velocidade. Por isso, o seu impacto causa destruição em várias escalas: desde uma pequena cratera ao extermínio de espécies animais, como advogam as teorias sobre a extinção dos dinossauros. Há dois aspectos a destacar neste raro fenómeno. A queda de um meteorito é um acontecimento que os humanos não podem testemunhar e o seu impacto provoca destruição. Podemos encontrar um meteorito, pedra lisa e escura devido à combustão a temperaturas escaldantes, mas não vê-lo cair, vê-lo em acção. Como os dinossauros, estamos à mercê do seu potencial destrutivo. Somos eventuais danos colaterais da sua queda, que sulca a superfície da Terra desmedidamente. Pano de fundo de um universo de ficção apenas invocado, a materialidade do meteorito no palco gera uma tensão produtiva com os corpos dos performers, que permanecem sentados até ao fim do espectáculo. Dificilmente, porém, poderemos reconhecer quem são, de onde vêm ou para onde vão.
Em Até que um Dia Deus é Destruído pelo Extremo Exercício da Beleza (AQD), não assistimos à queda do meteorito, mas encontramo-lo, tal como aos performers, no espaço cénico. O impacto da queda abre uma cratera, um espaço para a representação. A cena é delimitada pela moldura de luz desenhada no chão, uma profundidade iluminada. À pergunta retórica inicial dos performers, sucedem-se outras de evidente banalidade – comentários prosaicos, afirmações enigmáticas e disparates sem sentido evidente – numa cadência repetitiva, enfatizada por uma gestualidade, por vezes, histriónica. “Somos um grupo”, definem-se, que gosta de máquinas e mecanismos, e encetam uma aparente conversa com o público, durante cerca de uma hora. Esta, porém, apresenta algumas particularidades: os performers não interagem entre si e, embora dirigindo-se aos espectadores, não esperam a sua resposta. Mais ainda, falam em uníssono, embora com ligeiras modulações de tom e tempo. Este modo de enunciação demorado fabrica um tom artificial, distinto da melopeia de qualquer língua, e instala um ritmo repetitivo, uma cadência arrastada. Sobre a repetição das mesmas palavras surge a diferença da enunciação individual, criando uma textura rítmica de timbres.
Esta variação constrói-se sobre a repetição de figuras de estilo recorrentes na poesia, como a anáfora e a aliteração. Sensivelmente a partir de um terço do espectáculo, emergem as primeiras irrupções cacofónicas (a repetição sincopada da primeira sílaba da palavra vibration traça um arco sonoro até chegar ao verbo português “vai” na frase que estala e ressoa no vazio que se abre: “Vai ver se eu estou na esquina”, proferida por Marcela Levi), as derivas musicais (um pequeno excerto da canção you do something to me, de Cole Porter que deriva numa improvisação da melodia e da letra a várias vozes), e as onomatopeias (produtoras de nonsense, como o miado delirante que surge da repetição martelada da palavra now). Estas variações dinâmicas decorrem de um permanente e consequente jogo com as semelhanças e os contrastes sonoros e semânticos das palavras. Desvelando, fragmento após fragmento, a partitura, o espectáculo precipita-se para o final com mais uma pergunta: What do you think about death?. Significativamente, este é o único momento em que cada performer fala na sua língua nativa, assinalando a relação intraduzível e singular com a morte, que apenas pode tentar expressar na sua língua-mãe. Por fim, depois de mais uma secção de repetição e cacofonia do “mecanismo”, os performers anunciam: we will wait/faint/fake/fade. Uma música instrumental toma conta do palco. Os performers esperam, de semblante fechado e encostam-se às cadeiras, cruzando as pernas. A música termina. Longa pausa. Tal como no início, observam demoradamente o público. Descruzam as pernas, colocam as mãos nos joelhos, sorriem de novo e perguntam, reiniciando o ciclo: aaaaaare weeeeeee readyyyyyy?
Fabricando uma máquina falante-ouvinte, os performers transformam a situação de frontalidade com o público num diálogo de aparente proximidade. Característica do teatro pós-dramático, a comunicação direcionada para o público consiste numa forma de repensar a dinâmica da relação cena-público, testando modos de “estar com” o público. AQD propõe um movimento de comoção potenciador de afectos e de um fazer conjunto que releva da imponderabilidade e imprevisibilidade do encontro, tornando a circulação de afectos aberta ao que pode (ou não acontecer), sem determinar, todavia, quais os afectos intensificados. Na base das estratégias fundamentais utilizadas em AQD para estabelecer este movimento está uma tensão produzida entre a materialidade do meteorito, a teatralidade dos figurinos, o tom de alegria dos performers e o ritmo lento e pausado em que as palavras são ditas, quebrando os ritmos convencionais da enunciação idiomática. São essas estratégias, de produção de estranheza e encantamento, que procurarei aqui examinar, mostrando como elas manifestam uma política de afectos aberta ao que pode emergir da obra, influenciando a sua qualidade sensível.
Práticas radicais: a Beleza
Tratando-se de um verso do poema “Lugar II”, de Herberto Helder (HELDER, 1990), Até que um dia Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza intitula o espectáculo tematizando a questão filosófica da morte de Deus, mote inicial do processo criativo.¹ Nesse verso, atribui-se à beleza a causa da destruição de Deus. Mas, para o poeta, a beleza não é ocasional ou um acontecimento evanescente, mas um “extremo exercício”, uma prática radical. Essa prática é o fazer artístico, o doloroso mas paciente ofício do poeta, que envolve uma relação agónica com Deus (Molder 2012). Do combate, a beleza sai vencedora; Deus destruído. Mas o poeta paga caro o preço da conquista da imanência, exaurido pelo trabalho com as palavras para “apurar um dialecto”, que é o seu extremo exercício da beleza (idem, 72). A associação da beleza à destruição, não apenas do poeta mas da ordem do mundo ou da linguagem, é relevante para pensar qual a destruição em causa no espectáculo de Vera Mantero. O seu fazer artístico consiste numa potenciação de afectos criadores de mundo que exige, tal como em Herberto Helder, uma combustão, uma perturbação devastadora.
Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
E matar,
E alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
A conjunção causal “porque” expõe o tormento sem fim do fazer artístico como causa da aniquilação de Deus: porque o seu ofício implica a devastação para alegrar e aterrorizar o mundo. Neste sentido, a beleza transformadora da arte anda a par da destruição.² Cada obra é, assim, um meteorito arrasador que perturba e abre crateras/mundos de onde os afectos podem emergir. A imagem do artista incendiário, vandalizando os escombros de um desastre, apresenta surpreendentes semelhanças com a peste, requisito de um teatro vital em Artaud. O teatro da crueldade, um teatro que se propõe mudar radicalmente a relação com o espectador, atingindo-o ao nível do sistema nervoso, ergue-se sobre as ruínas da cidade minada pela peste, sobre a devastação de corpos empilhados, sobre o roubo de riquezas de casas suspensas no tempo. Estes gestos não têm outra finalidade a não ser a activação da sensibilidade – não a do organismo (o corpo organizado segundo funções), mas a do corpo sem órgãos (pulsão de vida intensificada) – que “dispensa por completo o real” (Artaud 1989, 25–6). Em AQD, a beleza invocada parece ser, justamente, a do fazer artístico que, na sua prática extrema da beleza, devasta, inflama e transforma a relação cena/público, embora, o recurso ao espaço tradicional do teatro, indicie o contrário. Esta prática da beleza implica a destruição da ideia do teatro como um lugar que separa, um lugar de produção de efeitos “para um público”, fazendo surgir um espaço aberto a “estar com o público”.
Neste espectáculo, estar em cena decorre de um vínculo íntimo e necessário entre corpo, espaço e palavra através de um “padrão poético”. Este padrão, tal como o pulsar da cratera, é criador de estruturas, formas e ritmos de ligação entre cena e público no interior da separação imposta pelo dispositivo teatral. Por isso, é necessário que a cratera aberta pelo meteorito exceda os limites da cena, que a luz transborde os limites do desenho traçado na superfície do palco, como revela a luz geral sobre o público durante todo o espectáculo. O espaço que desse modo emerge é um espaço sonoro, instaurado pelo ritmo cadenciado com que as palavras são proferidas, desviando e reenviando significados para os respectivos significantes. Isto implica uma proposta radical no estabelecimento da relação cena/público: esgotar os elementos visuais da cena numa imagem fixada de início e convocar o público para uma prática de escuta: do espectáculo, dos afectos que emergem do encontro, ampliados e intensificados por essa escuta que é ressonância afectiva.
Padrão poético: entrelaçar corpo-palavra-espaço
Uma incansável busca pela plenitude atravessa o fazer artístico de Vera Mantero. Podemos reconhecê-la no cruzamento programático de diferentes áreas artísticas (tanto na sua formação pessoal quanto na escolha dos seus cúmplices de projecto), nas formas colaborativas que os seus processos criativos têm tomado, bem como na investigação coreográfica sobre as articulações entre corpo e movimento num sentido alargado, isto é, relativamente às implicações estéticas, sociais, políticas e afectivas dessas articulações. A sua pesquisa consiste numa prática coreográfica “expandida” (choreography as expanded practice, Spangberg 2012), que entende de forma abrangente a coreografia para além de questões relativas estritamente à dança. Tendo entrado recentemente em circulação no discurso da dança, esta noção designa estruturas e estratégias artísticas e não-artísticas que visam produzir e pensar formas de mobilização políticas e sociais. Esta resistência face a uma noção tradicional de coreografia é evidente no termo utilizado por Mantero para definir AQD. Numa correspondência trocada por email, a coreógrafa designa-o por “construção performática”, evitando os termos exclusivos de coreografia, performance ou espectáculo. O que importa aqui sublinhar, contudo, não é tanto a indefinição do género artístico sugerida mas a necessidade de buscar a plenitude para além da arte, através de ligações entre os elementos da vida, do corpo e das palavras. O título do espectáculo Um estar aqui cheio (2001) é, porventura, o que mais claramente anuncia esta busca, significativamente surgido na sequência de uma profunda interrogação sobre a sua relação com a prática coreográfica, que levara Mantero a anunciar publicamente o final da sua produção artística, em 1998. No início do texto de apresentação do espectáculo, pode ler-se:
as ligações entre liberdade e desejo. entre abertura e emergência de movimento.
criar aquilo que cria movimento. criar o que cria desejo. criar o que cria aberturas.
incluir na vida toda a potência do corpo, toda a potência do seu saber, e toda a potência do seu desejo, dos seus diversíssimos desejos.
compreender a vida sensualmente, compreender a vida socialmente.
Estas palavras esboçam um programa de pesquisa que viria a tornar-se o cerne do processo criativo de AQD, em que se realçam as ligações entre subjectividade e movimento, sentir e compreender. É a partir deste momento na sua obra que a noção de “padrão poético” surge como a estratégia recorrente para granjear uma tessitura subtil entre os elementos da cena que permitisse criar “movimento” e “aberturas”, em suma, espaço para criar e recriar ligações. No dossier digital deste espectáculo (documento de trabalho), Mantero define o que constitui este padrão, “um padrão motor que põe as formas em marcha”:
combinações não-redundantes, pressão, tensão, cadência, frequência, ritmo, vibração, temperatura, intensidades.
Usar o volume de cada item. (Mantero 2006)
Patente nesta formulação está a ideia de um mecanismo iniciador do movimento das formas, que é engendrado por combinações, não ilustrativas, de significados ou simbologias, mas multiplicadoras de sensações e sentidos que se desdobram na experiência do evento. O registo intersensorial dos termos utilizados é evidente, com destaque para o plano visual, o auditivo e o táctil, uma vez que as diferentes características se podem verificar nos vários planos sensoriais (pressão, tensão, vibração, temperatura, intensidades), com diferentes, mas correspondentes, expressões. É desde logo nesta conexão entre-sentidos que as ligações subtis vão tecendo, em conjunto com as preponderantes componentes rítmicas que constituem a chave do mecanismo. O ritmo está no cerne da construção deste padrão, cuja frequência e cadência se reflecte, por sua vez, em estados de intensidade, em movimentos de amplitude variável ou tensões entre forças ou elementos opostos. Destacado dos restantes constituintes, o volume, isto é, as características espaciais de cada elemento do padrão, marca-o com uma qualidade geométrica, traçando as linhas de proximidade e distância entre os vários materiais estéticos de uma criação, o que se torna particularmente evidente se pensarmos na relação entre corpo e movimento, bem como entre palavra e materialidade sonora ou entre movimento e som.
Articular, relacionar ou ligar elementos no espaço através de estados sensoriais e intensidades rítmicas transversais às matérias ou linguagens a que se recorre no espectáculo, eis o padrão poético de Vera Mantero. Não por acaso, estas características recordam-nos a qualidade sentida da experiência patente no vocabulário intersensorial e rítmico utilizado pelos performers para nomear a relação sensível com o público (…). Este, tal como a teorização dos afectos vitais ou do fenómeno da sintonia (attunement) por Daniel Stern, sugerem a importância de qualidades dinâmicas inerentes à percepção global – com o corpo todo – da relação com o público ou da relação com a mãe, respectivamente. Ao evidenciar estas qualidades na composição dos materiais de AQD enquanto um padrão poético, Mantero reforça os laços entre som e afecto. O padrão poético “põe em marcha” um movimento que promove uma experiência de intensidades da obra, ligando fazedores e espectadores num movimento de comoção. Partilhando esta qualidade da experiência com afectos e som, como micro-movimentos interiores e contínuos, o movimento gerado pelo padrão poético potencia uma ressonância afectiva que permite sentir/escutar a conexão com o outro, o “estar com” da dança. Importa perceber, então, como se estrutura e quais as estratégias do padrão poético em AQD que configuram o espaço de relação cena/público e iniciam o movimento do fazer conjunto.
Nos documentos de trabalho de AQD, Mantero recupera a noção de “padrão poético” para descrever “a tentativa de entrelaçar palavra e corpo, palavra e experiência do espaço” (2006) que constitui o desafio que se coloca com AQD. Para Mantero, o corpo em cena é um corpo entrelaçado na dimensão sensorial, cognitiva, espacial e afectiva do acontecimento teatral. Fabião ajuda-nos a compreender este corpo:
A cena exacerba a condição vibrátil do corpo. Porque hiper-atento, o corpo cénico torna-se radicalmente permeável. Contra a ideia de corpos autónomos, rígidos e acabados, o corpo cénico se (in)define como campo e cambiante. Contra a noção de identidades definidas e definitivas, o corpo-campo é performativo, dialógico, provisório. Contra a certeza das formas inteiras e fechadas, o corpo cénico dá a ver “corpo” como sistema relacional em estado de geração permanente. O estado cénico acentua a condição metamórfica que define a participação do corpo no mundo. A cena mostra, amplifica e acelera metamorfose, pois intensifica a fricção entre corpos, entre corpo e mundo, entre mundos. (Fabião 2010, 322)
O corpo entrelaçado é o “corpo vibrátil”, um corpo de membranas porosas que costuram a respiração do dentro e do fora num movimento recíproco. Cunhado pela psicanalista e crítica cultural brasileira Suely Rolnik, o conceito de corpo vibrátil nomeia o corpo exposto ao contacto com o mundo em toda a extensão da sua matéria sensível, fronteira e abertura, que não percepciona formas, mas é afectado por sensações (Rolnik 2006). O corpo vibrátil (in)define-se por uma extrema vulnerabilidade que é também a sua força. Esta vulnerabilidade é, em si mesma, uma prática de escuta do contacto com o mundo, das sensações e impressões esculpidas no corpo. Este conceito informa o padrão poético de AQD que constrói um corpo entrelaçado: a partitura de palavras cria o corpo em cena, vibrátil, abrindo espaços de escuta.³
Será nestas ligações tecidas pelo padrão poético que é possível identificar as estratégias coreográficas utilizadas por Mantero para traçar a política de afectos de AQD e a participação do público no movimento de comoção, a saber: a estratégia do estranhamento e a estratégia do encantamento. Apesar de reforçar a divisão cena/sala, ao potenciar estados de distração, ADQ indetermina os efeitos da cena sobre os afectos na plateia, reorganizando, ainda que temporariamente, a relação de poder do sistema de representação porque a zona de contacto sensorial que o espaço sonoro e rítmico configura permite uma ressonância aberta aos afectos surgidos da imponderabilidade do encontro.
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¹ Este verso foi retomado pelo poeta, em 2009, para abrir o novo livro de originais, A Faca não Corta o Fogo, incluído na antologia Ofício Cantante (Assírio e Alvim).
² M. Filomena Molder sugere que Deus é também destruído pelo facto de não ter nascido, de não poder aceder à beleza de “vir à luz”, isto é, de que não há beleza sem o nascimento. (2012)
³ Importa destacar a importância e influência directa do pensamento de Rolnik no processo de criação de AQD. Convidada a participar em Um Mergulho, pensamento, poesia e o corpo em acção (Teatro São Luiz, Festival Alkantara 2006), evento que enceta a pesquisa criativa de AQD, Rolnik corresponde-se com Vera Mantero. Em resposta ao repto inicial enviado pela coreógrafa a todos os convidados do evento, Rolnik propõe reactivar a vulnerabilidade como acção de emancipação de promessas de mitos e princípios transcendentais, fundados em Deus: “Aliás, eu diria que a ideia ocidental de paraíso prometido das religiões judaico-cristãs corresponde a uma recusa da vida em sua natureza imanente de impulso de criação contínua. Em sua versão terrestre, neoliberal, o capital substituiu Deus na função de fiador da promessa, e a virtude que nos faz merecê-lo passou a ser o consumo: este constitui o mito fundamental do capitalismo avançado. […] Matar Deus, hoje, é quebrar a crença na promessa de paraíso e reativar nossa vulnerabilidade ao mundo e com isso conquistar a capacidade de habitar as turbulências que isso provoca em nossa subjetividade.”
Referências
ARTAUD, A. (1989) O Teatro e o seu Duplo. Edited by T. F. H. P. B. Brandão. Lisboa: Fenda.
FABIÃO, E. (2010) ‘Corpo Cênico, Estado Cênico’, Contra Pontos, 10(3), pp. 321–326.
HELDER, H. (1990) Poesia Toda. Lisboa: Assírio e Alvim.
MANTERO, V. (2006) Documentos de trabalho para AQD.
MOLDER, M. F. (2012) ‘Relação da palavra beleza em A Faca não Corta o Fogo de Herberto Helder’, Textos e Pretextos, (17), pp. 65–73.
ROLNIK, S. (2006) Cartografia Sentimental. Transformações Contemporâneas do Desejo. Porto Alegre: Sulina.
SPANGBERG, M. (2012) Choreography as extended practice. Situation, Movement, Object. Available at: http://choreographyasexpandedpractice.wordpress.com/about/.
STEIN, G. (1988) Lectures in America. Londres: Virago.
Ana Pais é bolseira FCT de pós-doutoramento em artes performativas (Centro Estudos de Teatro, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), dramaturgista e curadora. É autora do livro O Discurso da Cumplicidade. Dramaturgias Contemporâneas (Colibri 2004) e de Ritmos Afectivos nas Artes Performativas (Colibri 2018). Organizou ainda a antologia Performance na Esfera Pública (2017, Orfeu Negro) e a sua versão em inglês disponível online em www.performativa.pt. Foi crítica de teatro no Público e no Expresso. Como dramaturgista, colaborou com criadores de teatro e dança em Portugal e, como curadora, concebeu, coordenou e produziu vários eventos de curadoria discursiva, dos quais destaca o Projecto P! Performance na Esfera Pública (Lisboa, 10-14 Abril 2017) e Em Fluxo: sentimentos públicos e práticas de reconhecimento (Lisboa, 3-5 Abril 2019).