© Peter Hönnemann
Espetáculo: Mal – Embriaguez Divina, Marlene Monteiro Freitas, 24 de setembro de 2020, Culturgest, Lisboa
António Figueiredo Marques
Este Mal recebe-nos com um espaço cénico cheio e em altura, que apenas uma vez será substancialmente alterado. A isto se junta um jogo de luz que acrescenta clarões e cores, como se fossem holofotes de controlo ou de aviso, embora não seja certo a quem se destinam, se são mensagem de invasão ou de libertação, se de amigos ou de oponentes.
Ao fundo do palco, os performers jogam o que parece ser voleibol, numa área dividida pelas redes da modalidade, delimitação que também acompanha as laterais da área cénica. Sob um toque sonoro, os corpos-robot executam uma marcha síncrona, mas individual vindo, por fim, a ocupar uma bancada, que é uma torre, que é um castelo, que é uma escola, que é um tribunal, que é uma prisão, que é uma plateia, que é um banco de jardim. Ficam numa posição de visibilidade ou, pelo menos, de destaque; estão no centro, ao alto, estão ali para serem vistos, apreciados, e também a ver, como num posto de vigia, farol que ilumina um mar em todo o redor. Quantos mais faróis existirão? Quantos campos de voleibol, à direita e em baixo? Perguntam os sons, que ora caem em cima de nós, ora nos chamam distantes.
Uma bancada, palanque sólido, feito de material primário de cor parda dá casa, guarida, mas também é local de realização de tarefas, de trabalho. Proteção, labor e geometria. Um jogo de faz de conta, uma cadeia de brincadeiras sucede-se sobre a fragilidade do papel. Sem se dar conta, são as mãos, a saliva, os vincos que constroem uma cidade de papel erguida naqueles bancos de escola. É a aprendizagem do coletivo e do individual, é um urbanismo consubstancial ao humano.
O papel é um material concreto e um símbolo da tensão entre força e fragilidade. Usado como brinquedo, como proteção, como suporte, é um elemento fulcral na alegoria do que se pode manipular, construir, citar, acomodar: em suma, imaginar. E rapidamente desmoronar.
O papel cumpre uma função civilizadora do humano e da sociedade, não apenas o surgimento da escrita (a história do seu suporte até àquilo que hoje se entende por papel), a alfabetização, como também a contratualização de emprego, habitação: tudo passa pelo papel, esse infortúnio material do passado. Que não resiste à água ou ao fogo, mas resiste aos séculos. Papel que é uma missiva, passagem de testemunho, conta da luz ou segredo bem guardado numa carta. Entre efemeridade e temporalidade, a folha de celulose, além da sua dimensão vegetal e, como tal, biológica, representa uma acumulação de saber, de atos e de práticas estabelecidas e, simultaneamente, em desvanecimento intrínseco.
Pode ser este um local de excluídos, mas onde não há exclusão. Na banda de pupilos, prisioneiros, funcionários, habita também uma performer que não tem pernas. E quando tal é assumido na performance, o público, que antes se ria das tiradas mímicas cómicas, já não soube rir-se da força das coxas sólidas e curtas. Já não pôde gozar o prato quando as folhas brancas são colocadas, como no tabuleiro de uma impressora, nas virilhas deste corpo. As expectativas idealizadas de realidade em confronto com a concretude incontornável do que de facto é. A normalidade, portanto, não pode apenas conter o esperado, o sabido, o inerte.
O corpo é aqui um humano-máquina seja quando marcha, quando se senta e levanta, ou quando move objetos, mas esse maquinal não é apenas automatismo, porque se derrete na sua plena humanidade. Os corpos criam cumplicidades e dissonâncias entre si, talvez como personagens tipo no todo, mas singulares no seu gesto, tal alegoria de sociedade: dirigida, produtiva e, ao mesmo tempo, refém do inusitado e do efémero.
A performance tem algo como uma dramaturgia de concerto, entre corpo e som. Cada intérprete como um instrumento, no conjunto do seu naipe e na globalidade de uma orquestra. Os nove animais-robot desenham padrões geométricos em três-em-linha, na bancada de baixo, no meio e no topo, mas também em diagonais ou formas triangulares com um vértice em cada local, que faz um mapa de heterogeneidade informe na homogeneidade humana, natural, social, ou vice-versa.
O fabrico do som também convoca ambientes geográfico-temporais vários, sugere médio oriente, ocidente clássico, filmografia de diálogos e cenas. A cena dá-nos tiros, bombas, explosões aqui mesmo e, já ao lado, por contraste com outros sons longínquos, num alhures espacial. Em tal teia emaranhada que sublinha um efeito de borboleta: não poderei estar à margem do que acontece num derrame de crude num golfo, num massacre étnico, numa revisão laboral no outro ponto do globo. Recordemos. Todos os sons e apitos nos chegarão.
As variações rítmicas sucedem-se e pontuam os momentos do espetáculo. A precisão da forma e da cor da roupa que combina e recombina o fora e dentro: pescoço em verde destacado, forro do interior do casaco de um corpo que se liga a outro intérprete, uma codificação que assinala a inter-relação incontornável e abole a cisão entre interior e exterior, que desarticula o que – julgo que – me pertence e o que não me compete.
Este espetáculo é cómico e triste, e não nenhum ao mesmo tempo. Se é retrato de denúncia, não é menos uma bandeira branca de esperança na brincadeira, no lúdico, na diversidade com todos os vínculos comuns.
E talvez nada do que disse para trás seja importante, importante é a alegria contagiante, o gáudio e o viço que inebria.
António Figueiredo Marques é investigador no ICNOVA, grupo Performance & Cognição, e LEC – Laboratório de Experimentação Cénica. Bolseiro FCT com um projeto intitulado “Dramaturgias não narrativas: E quando um espetáculo não conta uma história” no âmbito do doutoramento em Ciências da Comunicação, especialização em Comunicação e Artes, NOVA FCSH.
Com interesse nas áreas dos Estudos de Performance e Media e Comunicação, quanto a dramaturgias, linguagem, narratividade e performatividade. Membro da ESTAP desde 2019. Enquanto performer destaca as formações com Mónica Calle, Miguel Moreira, Tiago Vieira, Renato Ferracini (Lume Teatro, BR) e Yael Karavan (UK). Aspira à vitória do menor.