Espetáculo: A Virgem Doida, Mónica Calle, 10 de setembro de 2020, Teatro Municipal S. Luiz, Lisboa

António Figueiredo Marques

É que esta versão faz abandonar o epíteto de espetáculo-striptease, fundador de uma certa ideia de Casa Conveniente, e o formato de sessões contínuas da montagem inicial. Mónica Calle reinterpreta (operação transversal e de fundo em todo o Ciclo Este É o Meu Corpo) a carga de erotismo, agora como um dispositivo maturado, acrescidos 28 anos após a primeira apresentação em 1992.

Cinco espaços demarcados, não mais, são a arena de desnudamento de duas vozes, uma surgida do despir da outra. Uma mulher e o seu amado. É um amor divino, mortal, de despojamento de tudo, abandono para encontrar. A voz de Mónica, prenhe, sempre um abismo, que habita, sem esgotar, os espaços.

A performance já lá está quando entramos, embora o assistente de sala nos diga em boa voz de rua um “bom espetáculo” tão desfasado, que se ouve como “bom apetite” quando já estamos no meio de uma iguaria.

Lá está Mónica à minha frente, corpo vertical, sem nada, antes de desprotegido; eu e nós, vestidos, calçados, sentados, de máscara na cara. A prova encapuzada de que o público é quem não existe, sequer na ficção.

E esse corpo a três metros de mim surge de repente transformado. Já não é o corpo de estatura normal. Metamorfoseia-se em achatado. Robusto, compacto, cheio e dilatado de volume. O corpo túrgido nasce – do chão e da língua.

Diz Já não sei rezar, e esta Virgem faz uma oração de terra e água. A toada de texto é como as ondas que embalam, um balanço de uma barca que desliza, canto físico, o marulhar da lira entoada na peste e na lama, como se lê em “Uma cerveja no inferno”, de Arthur Rimbaud. O impulso das vagas tem a forma de palavras, frases e pausas.

O monólogo poético das gentes e do amor derrama-se no chão, a Doida banha-se na terra, calca o carvão do solo nos pés, a terra arranha os joelhos e a carne. Local, espaço, cenário são uma força telúrica de rugosidade e texturas que marcam na pele e no corpo o que o amor, essa toada líquida, profere. O corpo é ferido do escuro terrestre e de uma alba pestilenta do poema simbolista. O ambiente tem uma luz profética que acalma e, ao mesmo tempo, adensa.

O corpo que é o seu é uma cópula da Virgem Doida e do seu Esposo Infernal, a fala que é aquosa, macia, afunda no telúrico duro da terra, um corpo ereto que é penetrado pela saliva das ondas.


António Figueiredo Marques é investigador no ICNOVA, grupo Performance & Cognição, e LEC – Laboratório de Experimentação Cénica. Bolseiro FCT com um projeto intitulado “Dramaturgias não narrativas: E quando um espetáculo não conta uma história” no âmbito do doutoramento em Ciências da Comunicação, especialização em Comunicação e Artes, NOVA FCSH.

Com interesse nas áreas dos Estudos de Performance e Media e Comunicação, quanto a dramaturgias, linguagem, narratividade e performatividade. Membro da ESTAP desde 2019. Enquanto performer destaca as formações com Mónica Calle, Miguel Moreira, Tiago Vieira, Renato Ferracini (Lume Teatro, BR) e Yael Karavan (UK). Aspira à vitória do menor.

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