Espectáculo: Ion, Christos Papadopoulos, 16 de outubro de 2020, Grande Auditório da Culturgest, Lisboa.

Raquel Rodrigues Madeira

O momento em que um espectáculo se inicia, estejamos em cima do palco ou frente a ele, é na maioria das vezes, carregado de uma acentuada tensão. E, independentemente do papel ou lugar que se ocupe e dos diálogos que venham a desenrolar-se, não há como ficar indiferente à atmosfera incomparável que inaugura o encontro, à exorbitância momentânea quando percepcionamos a reorganização do espaço e do tempo, que se preparam para acolher quem ali está presente e o que ali acontece. 

É com a pausa, no escuro e no silêncio, numa abertura ao vazio delineado e preenchido pelos corpos em escuta que se respiram, que Ion se inicia. Nesta tensão prolongada, em que se dilata o tempo e se amplia a espera expectante, surge um quase prelúdio, por si só tão cheio de possibilidades. Ouve-se ao longe uma presença electrizante.

A contraluz que gradualmente nos mostra o chão do palco é trespassada em rasgos rápidos pelos sons e imagens dos bailarinos. Subitamente vemos partes dos corpos, que um a um e num ritmo imprevisível cruzam o palco. Corpo-animal, ou será corpo-pássaro? Que corpos são e que corpo é este que constroem? Sim, porque é certo que um corpo colectivo se mostra aos nossos olhos, e ainda que o faça deliberadamente de forma reservada, somos invadidos por um construir progressivo, por um ritmo que mesmo imprevisível deixa pré-escutar uma determinada orgânica, exibe um pulsar.

Das ininterruptas e inesperadas deslocações, da sua acumulação e repetição ergue-se um conjunto cuja pulsação respira com o ambiente sonoro criado por Coti K. A música electrónica e repetitiva dialoga com o movimento do bando que afinal tem tanto de animal como de máquina. Um bando que, com braços longos como asas e com garras que deslizam no chão de poeira, olha o público e confronta-o com a sua unicidade.

A partir de então, Ion distancia-nos do linear, somos embebidos pelo movimento, pelo revelar progressivo de uma organicidade maquínica que oscila nos movimentos do conjunto de dez bailarinos. A luz incide nos troncos nus, corpos sem hierarquia, que ininterruptamente se repetem e desdobram em pequenas frases de movimento. Não se trata de mimesis, mas de uma abordagem detalhada à beleza do ritmo e da mobilidade do bando, do cardume, do conjunto, à evolução orgânica do seu movimento e das relações que ocorrem entre as partes que o compõem.

A acumulação e a variação de sequências de movimento conduzem à deslocação do colectivo no espaço, fomentada por combinações de pequenos movimentos do tronco e dos pés, num jogo de várias dinâmicas dentro da pulsação latente, que nos deslumbra pela coesão que manifesta. A repetição contínua evidencia os movimentos, que não dependem da sua amplitude, e o tónus muscular intensifica-se de forma crescente. Oscilam em combinações de gestos carregados de intenção enunciadora e o seu abandono ou a sua substituição por movimentos com um cariz quase mecânico ou automático, ainda que imbuídos da mesma intenção.

O uníssono e a admirável sincronia são pontuados por pequenos desvios e contrapontos, que alteram o funcionamento do conjunto, que se reagrupa para absorver um fragmento ou reage em cânone a determinada mudança, voltando sempre ao seu pulsar contínuo. Neste magma desenham-se padrões complexos que transitam em formas geométricas diversas, um funcionamento quase caleidoscópico, que propicia um estado meditativo.

A maleabilidade do tempo, trabalhada ao longo do espectáculo num fluxo progressivo e contínuo, densifica o espaço e distancia-nos da intensa expectativa inicial. Se nas primeiras secções somos despertados pelo resgate do conjunto e da natureza, que nos relembra a icónica Sagração¹ de Nijinsky, na parte central, onde se estrutura este espectáculo, somos embalados pelo exímio jogo de construção coreográfica, que em diversos momentos transparece o legado composicional de diferentes criadores pós-modernos. De uma forma surpreendente, só perto do final nos damos conta de que chegámos a um limbo entre a exaltação e o relaxamento, só aí nos deparamos com a sensação de sermos tomados por uma inebriante ilusão. Esse “tal” impregnar profundo da ilusão, que de uma forma própria e singular ecoa nas obras de diversos coreógrafos gregos que têm apresentado o seu trabalho ao público português.

Numa viagem meditativa, Ion deslumbra-nos com a sua construção a partir da simultânea complexidade e simplicidade dos conjuntos e padrões da natureza, e recorda-nos que, e como, somos parte integrante de um todo. O todo que aqui nos confronta e convida à reflexão, que chama a atenção para a importância do individual e do colectivo na sobrevivência, e que nos devolve diferentes olhares e perspectivas sobre as relações humanas, desde a interdependência entre o conjunto e o fragmento, ao papel do colectivo na resistência à actual tendência para a individualização. 

¹ A Sagração da Primavera (1913) de Vaslav Nijinsky. 


Raquel Rodrigues Madeira é bailarina, e investigadora no ICNOVA, grupo Performance & Cognição e LEC – Laboratório de Experimentação Cénica. Bolseira FCT com o projeto “Da Internet para os palcos da Dança: participação, intermedialidade e novas colaborações entre o físico e o digital”, no âmbito do doutoramento em Ciências da Comunicação, com especialização em Comunicação e Artes, na NOVA FCSH. Mestre em Artes Cénicas e licenciada em Dança. Membro da ESTAP e da Dance Studies Association.

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