Diante dos teus olhos
Sementes de uma prática de dança
Lisa Nelson 2003
traduzido do inglês por Sílvia Pinto Coelho
(Contact Quaterly Inverno/Verão 2004. Uma versão deste ensaio foi publicada pela primeira vez numa tradução francesa em Vu du Corps: Lisa Nelson, Mouvement et Perception, Nouvelles de Danse #48-49, Bruxelas, Bélgica, 2001).
Penso nos olhos. Muitas partes em movimento.
Penso na visão. Há mais para ver além do óbvio.
Penso na visão e no movimento. Uma dá lugar ao outro.
Vem-me à cabeça o diálogo. É assim que experiencio o seu casamento. E é assim que experiencio a minha dança – no corpo e na sociedade com as pessoas, as coisas e o espaço.
Agora vem a sobrevivência. Encontrar vias para continuar a dançar através dos anos tem sido tão simples quanto isso.
E devo a inspiração inicial para o meu trabalho com a visão, o vídeo e a dança, a uma questão posta por Steve Paxton quando ele, em 1972, esboçou o Contact Improvisation. Perguntou (cito) “O que faz um corpo para sobreviver?”
No meio de um dilema meu sobre sair, ou não, do campo da dança, surgiu uma outra questão: “O que é que vemos numa dança?”. Para chegar ao fundo desta questão, dei por mim a fazer a engenharia reversa, tanto da composição do meu movimento, como da composição do meu olhar. O texto que se segue regista um pouco desse percurso.
Somos especialistas na leitura do movimento. Dependemos da leitura dos detalhes para a nossa sobrevivência. O levantar de uma sobrancelha no meio de um frenesim de minúsculas mudanças e contenções no corpo significa algo para nós. Podemos ler as acções antes mesmo de acontecerem.
Com um imperceptível olhar de relance, podemos sentir que alguém que não queremos que nos veja está prestes a virar-se na nossa direcção. Antes de nos darmos conta, já compusemos o corpo de forma a estar invisível, ou pusemos o olhar noutro lado, na eventualidade de sermos observados com persistência. Estamos constantemente a recompor o nosso corpo e a nossa atenção em resposta ao que nos rodeia, a coisas que conhecemos e outras que desconhecemos. Esta dança interna é uma improvisação básica – lendo e respondendo aos guiões do ambiente. É o diálogo do nosso corpo com a nossa experiência.
Com esta fluidez natural, a mudança entre a leitura do movimento e a leitura da dança pode parecer simples. Evidentemente, para muitas pessoas, alguma coisa intervém, outras expectativas entram em jogo. Comunicação, talvez… o que é que convocamos para a leitura?
Lembro-me do movimento dos olhos das pessoas durante uma conversa. Com esta dança idiossincrática e intermitente, mostramos uns aos outros a nossa atenção e intenção. O ouvinte equilibra duas bolas, compondo o corpo para ouvir e para parecer estar a ouvir, ao mesmo tempo. Enquanto que a oradora tenta conciliar quatro bolas – compondo o corpo para pensar, para direccionar o pensamento para a língua, e para ver e ser vista. É uma negociação complicada entre as características dos nossos sentidos, as nossas habilidades físicas, e as regras da nossa cultura. O malabarismo de um performer é muito semelhante ao de um orador. Então, e o do espectador, no escuro, com uma bola?
Aos meus olhos, uma pessoa a dançar é a notícia quente, acabada de sair da prensa. Quando um bailarino aparece, para onde é que eu olho? Se a luz o permitir, olho para a sua aparência. Fico curiosa em relação à aparência dos seres humanos. Depois procuro os seus olhos. Fico curiosa em relação ao que ele está a pensar, onde é que ele pensa que está, para onde pensa que vai. Mesmo à distância, leio muito nos olhos de um bailarino. Vejo a sua vivacidade. Eles dirigem a minha atenção.
Começa um diálogo entre a minha leitura da intenção do bailarino e a minha própria intenção. Editando à medida que vejo, para dar sentido ao que está à minha frente, eu também olho através do meu gosto.
Pergunto-me o que será que as pessoas gostam de ver?
Eu adoro ver pessoas a cantar. O modo como a cara se mexe para afinar o som. Os olhos dirigem-se para fora, depois para dentro, depois para fora, depois para algures, não sei onde. Consigo ver o feedback em loop, a passar da garganta para o ouvido, para a garganta, para a frente e para trás. Às vezes, a cara parece virar-se do avesso. Às vezes, flutua num charco de vibração imóvel, pequenas formas de lábios, um vislumbre da língua. Vejo o som a moldar o cantor – o ouvido a afinar o corpo à medida que o corpo afina o som. Quando observo esta afinação, vejo o que quero da dança.
Como é que “afinar” é análogo em dançar e ver dançar? Primeiro, é físico – afinar é uma acção. Move o meu corpo, os meus sentidos, e a minha atenção. É também sensual – consigo senti-lo a acontecer no meu corpo. É relacional – é a forma como eu me ligo às coisas. E é composicional – põe as coisas em ordem.
Com certeza que há mais na dança do que isto, assim como há mais no canto. No entanto, traduzir a mecânica da afinação numa prática de dança mexeu comigo, porque estava curiosa, e porque podia fazê-lo. Isto iluminou muitas coisas, deixando intacto o mistério da expressão humana.
O corpo é um instrumento de afinação composto por antenas finamente diferenciadas. Estas são os nossos sentidos, e eles medem mudanças. Logo após nascermos, aprendemos a focar os nossos sentidos naquilo que precisamos para sobreviver. A cultura acrescenta uma camada de instruções para a construção dos filtros perceptuais que espera que precisemos para dar sentido ao mundo. Tenho sido surpreendida pelo olhar extasiado e aberto das crianças pequenas, antes de aprenderem a compor os pequenos músculos em torno dos olhos, o ritmo de olhar e de desviar o olhar, a distância justa entre as suas caras e a minha.
Os comportamentos sensoriais são editados a partir de uma paleta genética – o modo como os olhos detectam a luz no escuro, os ouvidos localizam a fonte do som, os corpos se movem para explorar através do toque, o nariz se posiciona para cheirar – e nós movemo-nos para satisfazer a nossa curiosidade acerca do mundo. Ao longo da vida, extraímos desta paleta, um reportório de respostas à mudança de ambientes internos e externos, para compor. Estes padrões estão subjacentes às nossas escolhas e moldam as opiniões e o apetite para o movimento. Eles dão corpo à nossa imaginação.
Há muito que me encanto com a dança. Não só com os gestos amplos, a pintura no espaço, ou a música tornada visual. Mas também com os detalhes de uma vida interior extravasada. Quando apareci na cena nova-iorquina da dança, em 1971, eu já tinha mudado para a performance improvisada, depois de anos a fazer coreografia. Fui para Nova Iorque para me juntar à companhia de improvisação de Daniel Nagrin, The Workgroup, e trouxe comigo a minha imaginação e os padrões de movimento da minha formação. Quanto ao meu trabalho, a perspectiva de criar enquadramentos para fazer uma incursão do meu movimento peculiar no palco de Nova Iorque, de forma significativa, era assustadora.
Embora os bailarinos à época fossem temporariamente relaxados – integrando os movimentos quotidianos, comportamentos de movimento “natural”, atletismo para o palco, e propondo novos enquadramentos para olhar para a dança – eu ansiava por ver outra coisa. Algo subjacente à interacção dos bailarinos entre si e à arquitectura do espaço, algo da interacção da bailarina consigo mesma – o diálogo interno que molda a superfície.
Notei, com ciúmes, que o público do cinema de animação, onde a figura humana (e o próprio espaço) é impiedosamente deformada, esperava que a sua imaginação fosse espicaçada para, assim, poder ler nas entrelinhas. Ao sentir que a mutabilidade física sem limites era o território natural da dança, eu desejava que os bailarinos em palco reivindicassem esse espaço – para articular o diálogo, outrora mágico, com o mundo físico, de que a nossa cultura nos extrai e nos incita a esquecer.
Consumida pelo desejo de revelar isso na minha própria dança, senti os filtros da minha formação a toldarem-me a visão. Sem saber mais o que fazer deixei de dançar aos 24 anos. Por sorte, peguei numa câmara de vídeo portátil e, durante uma imersão de quatro anos, encontrei o meu caminho de volta para a dança, através dos meus olhos.
Talvez porque o corpo fosse simultaneamente o meio e o produto da performance dançada, eu deslizava de um lado para o outro do espelho, para trás e para a frente, entre considerar vê-lo e considerar fazê-lo ou senti-lo. Filmar e editar vídeo colocou-me nos dois lados do espelho ao mesmo tempo. Ao tornar-me uma espectadora da minha própria visão, o vídeo foi um catalisador invertendo a dança interna de ver no espaço. Finalmente, tornou-se um modelo para explorar com outros, o modo como extraímos sentido da dança, de dentro e de fora.
Embora usemos os nossos olhos de forma diferente enquanto dançamos, enquanto aprendemos, ou enquanto assistimos a uma dança, eles têm um papel central em cada uma das situações. Enquanto dançamos, os olhos, quer estejam abertos ou fechados, actuam de forma a equilibrar o movimento do corpo – uma boa razão para o desenho de extrema mobilidade que têm. Quando abertos, eles são a nossa primeira defesa em relação ao futuro – o mais rápido dos sentidos a distinguir obstáculos no nosso caminho. Enquanto observamos, os olhos são a janela para o nosso sentido cinestésico – eles acolhem a dança.
Não é por acaso que a dança é uma tradição visual. Aprendêmo-la, na maioria das vezes, olhando e imitando. Para os bailarinos, o facto de estarmos geneticamente condicionados a imitar os movimentos que vemos desde o momento em que nascemos, é simultaneamente uma bênção e uma maldição.
A bênção é um mundo cheio de performances gratuitas. Uma criança com um pincel, as pessoas numa carruagem de metro apinhada de gente, estorninhos a explodir de uma árvore – não faltam modelos para observar e integrar. A maldição é que este reflexo é difícil de controlar. Estamos tão indefesos em relação à duplicação dos modelos de dança nos nosso palcos e salas de aula, como à possibilidade de evitar apanhar os maneirismos de pessoas que conhecemos.
No entanto, há mistérios neste mecanismo. Porque é que uma criança incorpora o coxear do pai, e o seu irmão, o sorriso perpétuo da mãe? De algum modo, escolhemos.
Tenho-me surpreendido com as minhas próprias escolhas. Trabalhar com vídeo mostrou-me que espelhar o conteúdo do que via era apenas parte da história. Tornou-se evidente que os movimentos minúsculos dentro do mecanismo do olho exerciam uma influência profunda nos padrões de movimento do meu corpo.
Nos anos 70, a tecnologia de edição de vídeo era fisicamente mais interactiva do que agora. Durante alguns anos, plantada em frente a dois ecrãs de vídeo, sentada numa imobilidade quase sobrenatural, excepto pelos dedos que premiam botões e os olhos no pingue-pongue entre ecrãs, editei inserts de fracções de segundo, de frases de movimento isoladas, remendando e dobrando pedaços das frases sobre si mesmas. Com o passar do tempo, inculcou-se na minha dança, uma qualidade de transições sem falhas, mas abruptas, como jumpcuts num filme. Embora não fosse indesejável, esta aprendizagem da repadronização visual e a sua aplicação à minha dança foram involuntárias da minha parte. É importante o que damos de alimento aos nossos olhos.
Noutros casos a repadronização não foi intencional, mas a aplicação que lhe dei foi:
Eu tinha ficado intrigada com a ideia do “momento antes da acção”, durante muitos anos de trabalho de gravação em vídeo com a educadora de movimento Bonnie Bainbridge Cohen com crianças com lesões cerebrais. Nessa altura, ela chamou-lhe “planeamento pré-motor”.
Com o óculo da lente fixado ao meu olho, o meu corpo preenchido com a imagem da cara de um bebé, muito perto. Quando a Bonnie lhe oferecia um brinquedo, eu podia ver minúsculas mudanças de atenção no foco dos seus olhos e, penso eu, no tónus da pele. Parecia que eu entrava no sistema nervoso dele, por detrás dos seus olhos, ou ele entrava no meu. Conseguia ver o seu desejo quando, com um toque de ajuda de Bonnie, organizava o sistema nervoso para alcançar o brinquedo, e via os seus olhos a focarem antes de ele o alcançar. De alguma forma, anos de observação deste planeamento pré-motor nos olhos dos bebés deram-me acesso ao meu próprio.
A primeira vez que reverti o meu movimento, a acção surgiu sem intenção enquanto dançava. Foi uma reacção ao reconhecimento de que uma acção que eu tinha acabado de fazer era um padrão habitual e irrelevante para a minha circunstância actual. De repente, dei por mim a reverter a acção como se a pudesse recuperar, desfazê-la. Então, assim que me apercebi que tinha começado a reverter, não pude deixar de reverter de novo, apanhada numa fenda existencial.
Apesar da estranheza, isto deu-me pistas para o facto de o meu corpo reconhecer o seu comportamento uma mera fracção de segundo após o início de uma acção. Se eu pudesse rebobinar a minha consciência atenta apenas mais uma fracção de segundo, poderia reconhecer o momento de organização do corpo antes da acção irromper. Assim, cheguei a sentir esse momento por detrás dos meus olhos, tal como o tinha percepcionado nos “bebés”.
Iniciei, para mim própria, uma prática de redireccionamento da forma, ou da intenção de uma acção antes de ela aparecer, no instante em que a sentia organizar-se no corpo. O resultado foi tão surpreendente como cair pela toca de um coelho adentro. Isto tornou-se uma técnica pessoal para provocar novos padrões de movimento e uma estratégia útil para reposicionar a minha imaginação.
O vídeo combina duas poderosas ferramentas de aprendizagem: um olho mecânico para dissecar as partes móveis do olhar – focagem, panorâmicas, rastreamento, zooming – e a reprodução imediata do playback, que mostra as causas e as consequências das nossas acções. Preparou-me para explorar o modo como o corpo se compõe: primeiro para focar os sentidos, depois para orquestrar o movimento em torno da sua imaginação e do seu desejo de significado. Foi um pequeno passo traduzir as minhas experiências de aprendizagem com a câmara em trabalho com os meus sentidos no ambiente, e fi-lo ao longo do caminho, integrando-os na minha vida diária, ensinando e dançando com outras pessoas.
No início, não tinha nada para me guiar senão o meu corpo e a própria ferramenta do vídeo. Ao colocar a câmara no olho amplificava as sensações do olhar e os movimentos que o meu corpo fazia para apoiar a minha visão. A desorientação física era tão extrema como aprender a conduzir. Observei o meu corpo a ajustar a sua forma à câmara na mão, tal como a mão de um bebé é moldada pela forma do copo que segura. O meu corpo tirava novas instruções de movimento e de quietude do seu diálogo com o meu desejo de ver. Para satisfazer os meus olhos eu recorria a todo o corpo e a toda a minha experiência.
Para sustentar o meu novo olho, o corpo adoptou uma quietude que nunca tinha experimentado antes. Embora o visor estivesse apenas a três polegadas do olho, eu podia sentir o meu foco a ancorar-me no espaço real para além dele, enquanto que aquilo que eu estava a ver penetrava profundamente no corpo, parecendo literalmente que o segurava. Entrei num diálogo entre a atenção e a fisicalidade. O interesse que tinha naquilo que via, tanto me mantinha em contrapeso como me tirava o chão debaixo dos pés.
No acto de filmar, cada movimento que fizesse alterava o movimento para o qual estava a olhar. Quando virava a cabeça, a borda do enquadramento parecia empurrar, seguir, puxar, ou conduzir aquilo que eu seguia através do espaço. Ao seguir alguém num salto, na direcção do salto, contra um fundo sem textura, o seu movimento no espaço apagava-se. A minha própria velocidade podia suplantar a velocidade do sujeito que filmava. O princípio familiar de que o acto de observar muda aquilo que é observado era evidente e o inverso era palpável – o que eu observava mudava-me. Ainda mais impressionante, pude observar depois, é que o modo como eu observava mudava-me tanto a mim como aquilo que eu estava a ver.
Qual era a figura, qual era o fundo? Quando o meu olho explorava algo imóvel, o movimento do meu olhar era a figura. Contudo, quando tanto o meu enquadramento como o objecto se moviam, a relação alternava-se. E isso era mais interessante.
Enquanto dançava, a figura/fundo foi traduzida por movedor/ambiente e mover/ser movido. A passagem de uns aos outros era determinada pelo modo como orientava os meus sentidos. Estivesse quieta, ou em movimento, quando pensava que estava a tocar numa parede, eu era a figura. Quando percepcionava que a parede estava a tocar em mim, então, eu tornava-me fundo. O meu corpo tornou-se o ambiente do espaço. Senti o movimento a reorganizar-se em torno destas cambiantes perceptivas, mudanças de qualidade, construindo novos modelos internos para a minha dança.
Olhar pela câmara para onde me conduzia? Por vezes seguia o apetite dos meus olhos. Esta experiência era a mais sensual, pois o olho seguia os limites sedutores da luz e da escuridão, despreocupado com a nomeação, jogando com o ritmo e padrões. Às vezes, o conteúdo dentro do enquadramento captava a minha curiosidade e eu organizava o movimento do olhar para lhe dar sentido. Intermitentemente, as necessidades do corpo tornavam-se as realizadoras do filme, quando eu espirrava ou abandonava o olhar para aliviar uma cãibra no pé. Por vezes, o olho seguia os ouvidos, ou a atenção vagueava para recuperar da ferocidade do meu foco. A orientação mudava constantemente de sentido para sentido, daquilo que estava à minha frente para o que estava dentro de mim, de sentir para fazer sentido. Esta fase de atenção era igualmente evidente enquanto dançava e observava a olho nu.
Frequentemente retirava a câmara. Observava a actividade dos meus olhos enquanto comia, ria, pensava, caminhava por terrenos familiares, descendo ruas desconhecidas, dançando, e olhando para qualquer coisa. Reparando nos padrões, brinquei com a sua alteração.
Ao entrar numa sala cheia de gente, observava o modo como os meus olhos instantaneamente procuravam os espaços vazios, caminhos seguros para navegar através do espaço, um padrão que forjei quando era muito jovem. Quando os redireccionava para se focarem nas pessoas primeiro, o deslocamento muscular era minúsculo, mas o meu futuro na sala mudava completamente.
Deixados à sua própria sorte, como estão na dança ocidental, os olhos movem-se automaticamente para contrabalançar o movimento do corpo. Quando inverti essa relação redireccionando os olhos no meio da dança, fiquei abismadada com o poder de duas pequenas bolas de fluido, movidas por doze pequenos músculos, a dirigir os meus 50 quilos através do espaço.
Olhei para padrões de micromovimentos, como a composição do movimento dos olhos e a postura do corpo enquanto andava para trás. Sustentar essa organização enquanto caminhava para a frente fez mais do que provocar andares estranhos. Transformou-me numa criatura, mostrando que a forma como afinamos os nossos sentidos está na raiz do nosso carácter, e a transformação é facilmente acessível através da recomposição dos olhos.
O acesso à reprodução da imagem (playback) tornou evidente que cada movimento da câmara era uma escolha, consciente ou não, quer pelo desejo fisiológico ou pelos hábitos dos meus sentidos, quer pela necessidade de dar sentido ao que estava diante de mim, quer pela circunstância do meu corpo. Quando visionava uma cassete logo após a filmagem, podia lembrar-me daquilo que causou o deslocamento da minha atenção para dentro e para fora do corpo e ver as consequências. Vim a reconhecer qualidades distintas decorrentes de cada um destes princípios organizadores, e registei as minhas preferências.
Às vezes via coisas na gravação nas quais não tinha reparado enquanto filmava, mas que, num segundo visionamente, era claro que me tinham guiado. Evidentemente, o meu movimento era moldado por reacções a sinais no espaço que me eram invisíveis. Isto lançava uma luz de dúvida sobre a ideia de impulso de movimento “espontâneo”. E mudou a minha percepção do espaço enquanto dançava: eu estava a nadar nos sinais.
Operar com os olhos abertos mantinha-me a uma distância do ambiente. Para aproximar o espaço, só precisava de os fechar. Novas instruções para navegar pelo espaço surgiram do tacto e da audição e informaram a minha dança com os olhos abertos. Ler o espaço desta forma fez com que ele se imprimisse no meu corpo, fez de mim uma impressionista. E o inverso – o meu movimento ofereceu um espelho ao espaço tornando visível a sua vida oculta.
Ao observar dança, como ao observar qualquer outra coisa, constrói-se uma imagem a partir dos estímulos de muitos sentidos e cada um mede o tempo à sua maneira. Com os olhos fechados, leva muito tempo a aprender um movimento de alguém. A imaginação enxerta-se no fluxo do tempo. Confiando no tacto e na audição, surgem estranhas complexidades físicas, evocando memórias de interacções com o mundo animado e inanimado, enquanto fazemos a revisão de toda a nossa experiência para fazer sentido a partir do que está nas nossas mãos.
Por vezes, o que me lembro de saborear enquanto filmava não era visível na reprodução, ou quase não o era. O tempo que leva a ver é um factor. O tempo passa de forma diferente num pequeno enquadramento. Lembro-me da minha irritação durante performances ao vivo, quando movimentos complexos fluem mais rapidamente do que aquilo que consigo ler. Os meus sentidos procuram um envolvimento mais rico, talvez para a leitura do espaço negativo ou do som; ou saem do teatro para os meus pensamentos. A hierarquia dos sentidos é outro factor. Quando havia música à minha volta enquanto filmava, via depois na reprodução o modo como o meu olho embarcava nela, ofuscando-me ou atraindo-me para os detalhes do movimento porvir.
O vídeo é uma máquina do tempo. Uma gravação facilita a memória e imita as suas imperfeições. A ideia de que uma gravação está fixa tem sido de pouca utilidade para mim. Vejo algo diferente de cada vez que reproduzo a gravação. Além disso, o gravador coloca o tempo nas nossas mãos. Um acontecimento gravado em cassete tem plasticidade. Podemos fazê-lo andar para trás e para a frente novamente. Podemos ir mais depressa, condensando a forma. Ou mais devagar, esticando os tecidos do conteúdo. Podemos saltar aleatoriamente de um momento para o outro. Começar em qualquer lugar, acabar em qualquer lugar. Dentro do corpo, estas operações ganham complexidade.
Movendo-me com ou sem câmara, quando peço ao meu corpo para reverter o seu percurso até onde conseguir lembrar-se, as mnemónicas surgem espontaneamente, sem nenhuma ordem particular, de muitas origens – da minha organização física, da relação com o espaço, das sensações, ou dos pensamentos ao longo do caminho. Ao sintonizar a minha atenção com o passado recente, viajo no tempo em duas direcções ao mesmo tempo, seguindo o meu corpo até onde estive enquanto me encontro onde estou. Isto não é tanto um teste de memória, mas mais uma questão de consciência. Onde é que eu tenho estado? O que é que eu saboreei aí? Quando alguém observa os meus resultados, ou eu observo os deles, podemos comparar as nossas memórias.
Sempre com curiosidade em saber como os bailarinos olham para uma dança, peço-lhes que assumam o papel do gravador de vídeo com os seus corpos. Vemos uma dança, e depois um grupo de nós, todos ao mesmo tempo, mostra imediatamente aquilo que percepcionámos dessa dança para o(s) performer(s) a verem. Para realizar esta reprodução fielmente, temos acesso a todas as nossas capacidades físicas e a toda a nossa experiência.
Aquilo que cada observador encontrou de mais relevante na dança é colocado diante de nós. Alguns foram atraídos pelo desenho no espaço, outros pela relação com a arquitectura, outros pela psicologia, alguns pela qualidade do movimento, alguns pela acção, alguns pelo que imaginaram enquanto observavam – o que desejavam ter visto. O que é retratado é uma percepção colectiva da dança, uma dança de opiniões.
Assistir a estas danças de segunda geração é como observar o céu. Invariavelmente, reparamos em manifestações distintas e na forma mais ampla gerada ao longo do tempo. Os consensos entre nós são impressionantes. No entanto, não há aqui conclusões. Este exercício de percepção deixa em aberto a questão: “O que vemos numa dança?”. É uma semente que questiona a visão e a coloca em jogo.
© Lisa Nelson 2003
Lisa Nelson, jogadora de Tuning Scores (partituras de afinação) e exploradora do papel dos sentidos na performance e na observação do movimento. É instigada pela curiosidade em relação ao comportamento da dança, aos sistemas de transmissão e de tradução, aos padrões de cultura de sobrevivência, e ao sentido da imaginação. A edição e a montagem, em variados meios – incluindo a montagem de vídeo e a edição da revista de dança Contact Quarterly, desde 1976 –, têm sido uma prática de vida adjacente à da dança. A sua produção escrita está disponível online nos sítios: www.movementresearch.org e www.oralsite.be. Vive em Vermont, nos Estados Unidos da América.