Sílvia Pinto Coelho (2014)
Este texto é uma edição da conversa original que gravei com a Olga Mesa no teatro Pradillo, em Maio de 2014. Na altura, o pretexto foi a tese de doutoramento Corpo, Imagem e Pensamento Coreográfico (Coelho 2016), para a qual usei testemunhos de coreógrafos com quem experimentei jogos de composição e de improvisação, e dispositivos de olhar e de visão, que achei poderem contribuir para um discurso sobre pensamento coreográfico.
Na sequência deste e de mais encontros, convidámos a Olga Mesa para o Encontro Internacional Presença, Ausência e Invisibilidade (Out 2022), para rever e comentar o filme Branca de Neve de João César Monteiro (2000), que foi uma das inspiraçãoes para o seu trabalho coreográfico e videográfico O Lamento de Branca de Neve, estreado em Guimarães – Capital Europeia da Cultura, em 2012. Convidámos também para o P.A.I., o coreógrafo João Fiadeiro para entrar em diálogo com Olga Mesa, numa oficina dada em conjunto – The inside of the out (of sight).
Madrid, Maio de 2014
SPC: Olá Olga, obrigada por esta entrevista. Queria pedir-te que começasses por falar do teu percurso pessoal e profissional.
OM: Curiosamente, o primeiro trabalho longo que fiz começou aqui no Pradillo. Fiz também uns trabalhos antes, peças curtas em Nova Iorque, mas a memória que tenho do confronto com o espaço de uma forma mais real, no sentido de uma criação de longa duração, foi com Lugares Intermédios (1992). Essa memória está ligada a uma necessidade muito forte de perceber que as coisas que aconteciam nesse espaço, onde se estava com o corpo, eram coisas que pertenciam a uma construção. Uma construção num tempo e num espaço que o próprio corpo modificava, ou transformava, ou se apropriava delas. Esta questão do espaço como um ponto de partida, uma página em branco onde o corpo começa a tomar decisões, começa a tomar responsabilidades. Também não só é um corpo que está dentro de um dispositivo teatral com as luzes, o som… Mas as decisões que esse corpo toma afectam o que faz e o que deixa de fazer e o modo como faz, ou como constrói esse espaço, também em relação ao que partilha dessa construção com o espectador. Ou antes, o que é que faz sentido não só para o espectador, como testemunha, ou como receptor, mas para o próprio corpo enquanto intérprete performativo. Claro que eu falo agora desta maneira, depois de tanto… Naquela altura, eu não formulava assim… Bom, eu partia de um imaginário….
SPC: Podes recuar um pouco mais atrás no teu trabalho? Por exemplo, esta ida para Nova Iorque foi quando?
OM: Foi muito importante porque eu recebi um prémio, aqui em Madrid. Nós criámos uma das primeiras companhias independentes com La Ribot, Blanca Calvo, nos anos 1984-1985, a Companhia Bocanada. E eu trabalhava como intérprete, mas era já uma configuração muito pessoal. Éramos todas muito… de uma geração nova. Queríamos abrir um caminho que aqui não existia, onde a dança fosse já uma pesquisa. Onde a relação do intérprete com o coreógrafo fizesse parte de uma pesquisa comum. E éramos muito autodidactas no terreno da criação. Vínhamos de formações muito académicas, muito fortes. Com uma técnica de ballet muito forte. Mesmo muito. Eu acabei por estudar na escola de Rosella Hightower, em Cannes, entre os meus 18 e os 21 anos. Ballet clássico, mas eu faço ballet clássico desde os quatro anos. Fiz o Conservatório. Não terminei o curso, cheguei ao quinto ano e comecei a dança contemporânea com dezoito anos, mas desde os quatro que tenho um trajecto muito formal.
SPC: E cantaste também?
OM: Sim, estudei piano até ao grau médio. Cinco anos de piano, cinco anos de solfejo, fiz canção coral, comecei também, um pouco mais tarde, ao seis, sete anos. E estudei em paralelo, nos dois cursos de música e de dança até aos dezassete anos.
SPC: E os teus pais viviam em Madrid?
OM: Não nas Astúrias. Em comecei nas Astúrias e com dezasseis anos vim para Madrid, porque a professora que eu tinha na academia de dança, em Avilés, disse-me que já não conseguia fazer mais. E que, se eu quisesse mesmo fazer uma carreira profissional teria de viajar. Eu comecei desde muito pequena a fazer os meus solos. Comecei a trabalhar diante de um público, a solo, nos festivais desta escola, em Avilés. E tenho a memória de estar no palco quase como solista. Quase, porque ela fazia solos para mim desde os meus sete anos. Aos sete anos, o meu primeiro solo, a Dança do Fogo de Manuel de Falla. E fazia um todos os anos. Tenho um reportório de fotografias de solos que… (risos). Quando fiz dezasseis anos, curiosamente, fiz uma Carmen, uma habanera da Carmen com dezasseis anos. Foi o meu último solo em Avilés. Dançado em pontas. Uma coreografia pequena dentro de um festival.
SPC: De alguma maneira, a construção do estúdio que tem os espelhos e as câmaras já seria uma coisa que te fazia pensar, ou estava simplesmente lá, como uma evidência?
OM: Eu não sei, porque a relação com a câmara começou em Nova Iorque de uma maneira muito simples. Uma câmara fotográfica e eu comecei a… Mas isto é muito mais tarde…. Eu cresci num espaço cheio de espelhos, claro. Sabes como eram as configurações de ballet e a relação com o espelho no ballet. Tão estranha, não é? E, por outro lado, fascinante também, não? Porque é como tentar construir uma imagem de ti mesma e com um ideal! Com este ideal que é o do ballet clássico, não é? Mas provavelmente, eu creio que o momento do questionamento a começar a activar-se não aconteceu até eu começar as minhas próprias criações. Mesmo como intérprete, com outros coreógrafos, não me lembro de ter essa questão. Eu creio que foi mesmo o momento onde comecei, pela primeira vez, a confrontar-me com a minha própria percepção e com um diálogo com… A tomar consciência de um outro ponto de vista. Do ponto de vista do “outro”.
SPC: E esse prémio, já é um prémio de uma criação tua?
OM: Sim, foi a minha primeira criação. Isso foi muito surpreendente também. Porque quando eu estava na Bocanada Danza foi uma época difícil, eram momentos… Não havia subsídios, estava a começar a dança contemporânea. A Catalunha, em Espanha, já estava mais avançada. Já tinha um histórico de pessoas que tinham estado em Nova Iorque e que tinham regressado com… ou de outros sítios na Europa. Mas Madrid estava muito baseada na dança mais académica. Por um lado, havia o Ballet Nacional, e por outro lado, a dança flamenca, também. E a dança contemporânea estava ali… Então, eu fiz a minha primeira peça com o Juan Dominguez. Era um dueto Jersey no Alto de um Telhado com a Mão em Quarto Crescente (1988). Um título enorme. E essa peça teve dois prémios. Teve um prémio de criação coreográfica e também recebi o prémio de melhor intérprete. O que foi algo extraordinário porque permitiu-me também ter várias bolsas. Por um lado, uma bolsa para estudar na escola de Merce Cunningham, em Nova Iorque, como intérprete, e outra para uma criação, pois não havia outro tipo de apoio financeiro. Foi assim que deixei o projecto Bocanada para ir para Nova Iorque. No início, fui com a ideia de ficar um ano e acabei por ficar três anos. Porque tive uma renovação (da bolsa). Eu cheguei a Nova Iorque, já com um grande conhecimento da história da Post Modern Dance, mas claro, eu tinha 29 anos e cheguei a Nova Iorque… Eu ía para fazer aulas com o M. Cunnigham, e quando cheguei ao Cunningham foi um pouco difícil, no princípio. Porque confrontei-me com uma técnica muito, muito virtuosa, que já não coincidia com o meu desejo profundo da prática. Eu já estava a começar a… Eu sabia que viria um momento de mudança, eu vinha de um treino técnico muito forte, desde pequena, e a técnica Cunningham ligava-me mais a um passado do que a um futuro. Em termos de prática corporal. E isso foi um pouco difícil na chegada a Nova Iorque. Porque, de repente encontrei-me com uma prática que não tinha escolhido. Mas percebi que dentro da minha história como bailarina, essa oportunidade de poder encerrar um ciclo com o Cunningham era muito interessante de perceber. E tive professores muito bons como a Ann Papoulis. Lembro-me sobretudo da Ann Papoulis porque era uma pessoa que abria… Não estava com o Cunningham na linha dele, estava a abrir outra porta. Dentro da técnica de Cunningham estava a respirar e quase a emitir sons com a respiração. Literalmente. Tinha um modo de atacar a técnica de Cunningham, maravilhosa. Eu aí percebi também como as técnicas na dança, em geral, são tão boas para poder assimilar e para depois desviar. Porque é aí que começa a entrar realmente o interesse da própria técnica. Não é uma coisa que tem de ser… A técnica existe para ser desfeita. É fantástica construí-la para logo a poder ver de um prisma muito mais orgânico e não tão mecânico. Não tão virtuoso, digamos assim. Então, bom, Cunningham deu-me essa oportunidade de fechar um ciclo como bailarina. Porque Cunningham chegou a convidar-me para ter aulas com a companhia em muito pouco tempo. Como tinha um nível forte como bailarina clássica, rapidamente fui para o nível avançado. Um dia, no elevador, encontrei-me com o Cunningham, e ele perguntou-me… Porque ele ia, de vez em quando, quando tinham tournées, ver as aulas de avançado, para convidar, quem sabe, alguns bailarinos. Ele convidou-me e eu estive a ter aulas seis meses na companhia, com ele. Mas depois tive de lhe dizer que já estava a começar o meu trabalho como coreógrafa. E, em Nova Iorque, eu comecei a alugar estúdios, paralelamente ao meu plano com Cunningham. Tomei a decisão de, com o pouco dinheiro que tinha… Havia tantos lofts disponíveis e comecei a criar os meus primeiros solos…
SPC: Chegaste a fazer aulas fora da companhia do Cunningham?
OM: Sim, claro, mas coisas muito… Por exemplo, tomei um pouco de contacto com o teatro físico de Grotowski. E foi complicado também, porque interessavam-me mais historicamente, mas a prática também já estava longe… Depois, fiz algumas aulas, uns workshops pontuais (com várias pessoas). Em Nova Iorque tomei contacto com dois coreógrafos que me convidaram para trabalhar com eles, um foi o John Jasperse e o outro foi Margarita Gergue, que era uma coreógrafa catalã residente em Nova Iorque. E com eles, sim, tomei contacto, através da criação, com a release technique, mas não porque tenha estudado a release technique. Porque não tinha muito tempo, não…
Ao contacto-improvisação assisti vendo projectos e através de pessoas que me convidavam. Por exemplo, o Jeremy Nelson tomei contacto com ele. Tomei um pouco de contacto com Susan Klein, mas Susan tem uma técnica mais de colocação, não? Que é a técnica Klein. Tomei um pouco de contacto um pouquito. Então, eu aproximei-me de certas coisas, mas não aprofundei. De algum modo, eu comecei a trabalhar sozinha com o meu corpo e quando via coisas de release technique e tal, já estava a experimentar comigo. Porque eu vinha também com uma necessidade de voltar ao corpo, a uma respiração, de voltar a um relaxamento, a uma outra maneira de movimentar o corpo que fosse menos no esforço, menos no virtuosismo e mais na articulação. E isso começou a aparecer naturalmente.
SPC: Portanto, alugavas um estúdio e ias para lá e estavas a descobrir… Ias sozinha para o estúdio ou convidavas pessoas para trabalhar?
OM: Sozinha, muito sozinha. Eu fui sempre muito sozinha em muitas coisas, na minha criação. O que não impedia que houvesse sempre uma pessoa de confiança que acabava por convidar a ver, mas numa etapa já avançada. No início, estava muito sozinha. E tive algumas colaborações com um fotógrafo, com um catalão que vivia lá Luís Escartín que fazia um pouco de vídeo. Estive, então, como bailarina, com John Jasperse, que foi realmente um encontro muito interessante. Porque, com John Jasperse, tratou-se de trabalhar um pouco a escrita coreográfica assim com muito detalhe. Era tudo super preciso na articulação de movimento, de fazeres mais assim, ou assim (demonstra com a cabeça duas posições ligeiramente distintas), que não é o mesmo. Mas a partir de uma perspectiva nova, para mim, que era trabalhar mesmo com… Bom, com aquilo que vinha da Trisha Brown e que rompia um pouco com o que eu tinha da formação de Cunningham, claro. E com o John Jasperse tenho sempre memórias muito agradáveis, porque, quando ele estava a começar a sua criação, estava a começar a vir à Europa ele dedicou-me uma atenção realmente muit especial. Éramos um trio – dois homens super bailarinos de release technique e eu era uma mulher que vinha de outro mundo – e ele queria a minha presença, não é? Daí que dedicou-me muito tempo a transmitir-me coisas muito interessantes, muito precisas e anatómicas sobre movimento. E estar-lhe-ei sempre muito agradecida porque ele foi muito generoso comigo. Muito, muito bom. Portanto, eu comecei nessa altura com estes solos e comecei a apresentá-los em contextos off e depois em sítios mais importantes, como a Judson Church que acabou por ter uma soirée comigo (1992). Alguém me comissariou e, na Judson fiz um programa meu antes de sair de Nova Iorque, para o qual convidei também a Margarita Guergue e uma rapariga brasileira (Andrea Lerner) para trabalhar. E fizemos uma espécie de improvisação conjunta. O tema da improvisação não era um foco que a mim me interessasse muito como prática com o público. Aproximei-me de algumas jam sessions de improvisação que eu apreciava quase mais só a ver, ou a ir convivendo com as pessoas que praticavam improvisação, entre nós. Mas não tanto como objecto público, como situação com público. Isso nunca me interessou muito… Fiz uns duetos, fiz uns solos… A peça coreográfica que ganhou em Madrid foi apresentada em Nova Iorque. Convidaram-me para vários sítios com outra pessoa, já não com o Juan Dominguez, mas com um bailarino espanhol que estava também com uma bolsa lá, Iñaki Azpillaga, e que também dançou com o Wim Vandekeybus. É hoje assistente de Wim Vandekeybus. Iñaki Azpillaga um bailarino espanhol que vive na Bélgica já há muitos anos.
SPC: E esta viagem ao Arizona que fizeste, referiste-te a ela como sendo importante… Queres falar um bocadinho sobre isso?
OM: Sim, quando estive em Nova Iorque a fazer estes solos, enviei um vídeo aqui para Madrid para a directora do concurso coreográfico. Depois ligou-me o Carlos Marquerie, o então director do teatro Pradillo, em 1991, dizendo que lhe tinham interessado muito os solos e propôs-me uma produção, em 1992, que era a capital europeia (Madrid Capital Europeia da Cultura 1992). E foi aí que eu vim a Espanha para falar com ele.
SPC: Mas com vídeo?
OM: Não, com o que eu quisesse. Foi a primeira produção de um trabalho meu. O produtor, a figura do produtor apareceu. Eu não fui procurá-lo, ele apareceu. Eu, em Nova Iorque, trabalhava com um pouquinho de dinheiro, nada… E então disse-lhe – “Bom, poderá ser um solo? Porque estou a trabalhar principalmente sozinha”. E ele disse – “Tu tens o dinheiro, fazes o que quiseres”. E eu, não sei porquê, quis ir… Imaginei que queria o meu corpo, queria ver-me num deserto. Estar num deserto. E convidei o Luís Escartín.
SPC: Será que isso poderia ter alguma coisa que ver com uma espécie de “limpeza” depois de tanta informação recebida? Ou, estar num deserto, em lugar de estar num estúdio com todos os fantasmas do estúdio…
OM: Sim, eu acho que havia duas coisas, uma como se tivesse o corpo num espaço real fora do estúdio. Num espaço, ou seja, que o corpo estivesse numa situação em que as coisas que existem são reais e o que se passa é que, claro, são reais mas num deserto… é a metafísica. Eu creio que quando falo de corpo, o corpo, para mim, parte de algo que é desconhecido e algo que, por muita informação que tenha, está constantemente a redescobrir-se. É como um ponto de partida inicial de algo, sempre. Eu senti-o assim, eu não sabia o que era ir a um deserto, e provavelmente tinha essa necessidade de nos encontrarmos sem referentes. Essa necessidade de te encontrares contigo de um modo em que o espelho não seja o espelho. Que o espelho seja o espaço e, num deserto, há um espelho. Porque de alguma maneira estás tu contigo. As coisas regressam a ti também. Há como que uma ressonância onde não podes realmente apoiar-te. Não podes agarrar, é algo mais da ordem do invisível. É algo mais da ordem do desconhecido também, no sentido de… Não uma grande interrogação, mas sim uma paisagem, onde o corpo realmente… Onde o corpo toma consciência de coisas menos visíveis, mas, por isso, digo metafísico porque é também um espaço não do imaginário, mas é um espaço da consciência, penso eu. Fui com o Luís Escartín e com uma câmara. Eu queria filmar. Luís Escartín é um artista visual catalão, faz documentários.
Ele tinha uma câmara e eu já sabia que queria fazer um vídeo, e imaginava já essa câmara colocada num sítio, simplesmente. Falava com o Luís que imaginava uma câmara olhando para um espaço onde eu podia entrar e sair, era o quadro da câmara. E falámos rapidamente de profundidade de campo. Porque foi um vídeo onde o “entrar e sair”, não se faziam pela direita, ou esquerda, mas sim na profundidade de campo. Era a partir do desaparecimento dentro do plano, ou de chegar ao primeiro plano, não muito perto. E então, íamos juntos, planificávamos um dia a andar pelo deserto e, de repente, havia um espaço que interessava aos dois e apareciam surpresas incríveis. Ias a andar e, de repente, aparece um objecto gigante como um bidão oxidado que devia estar ali há mil anos. Ou aparece um automóvel, os restos de um carro. Muito americano, imagina os filmes do deserto americano. American Dreams e era assim como… Bom, a terra tinha uma cor! De repente, chovia e nesse dia de chuva decidimos fazer uma filmagem e eu estava totalmente cheia de barro e ia a correr e já não conseguia correr. Via-se uma pessoa que não conseguia correr no barro e, de repente, fizemos captações da descoberta desse espaço que eram acções muito simples.
SPC: Lembrei-me agora do filme de Pina Bausch, O Lamento da Imperatriz (1989). É alguma coisa que te tenha influenciado já nessa época?
OM: Ainda não conhecia, não. (Risos) Vi muito, muito mais tarde. Sim, eu acho que, para mim, aquela câmara já era um diálogo com o “olhar” (la mirada) muito forte, porque eu já estava… Eu encontrei o meu espectador nessa câmara. Era um interrogante, mas não era o espelho, não… Já era realmente o outro, não achas? A câmara já é o outro. E lembro-me que, com o Luís, também falava muito de como estávamos a imaginar uma montagem. Porque, claro, havia que montar aquilo e com que critérios? Que selecção? Bom, falava-se de ritmo, claro, quando falas de montagem, há que pensar no ritmo. Mas, para mim, era muito claro que eu não queria nenhum tipo de manipulação, eu queria corte, puro corte. Não queria encontrar uma relação. Então, cortava-se e de repente havia saltos, não é? Eu lembro-me desta coisa dos saltos de… raccord. E lembro-me desta coisa do raccord que me chamava muito a atenção. Porque o Luís conhecia um pouco mais a linguagem audiovisual, era o seu terreno.
SPC: Mas tiveste algum tipo de formação? Ou foi só de ver filmes e de trabalhar com um…
OM: Não. Eu comecei a ver, a descobrir o cinema, em Nova Iorque, através de outro amigo que realizou cinema e ele fez-me descobrir todo o Pasolini, Tarkovsky e comecei a ficar viciada nesse sítio na Cinemateca, ou o Anthology Film Archives, em Nova Iorque. Na realidade, para mim, Nova Iorque foi a descoberta da linguagem cinematográfica que eu conhecia um pouco, mas era só um pouco. A descoberta da arte contemporânea também. Ou seja, aquilo que realmente estudei em Nova Iorque, para além daquilo que estudei de dança, foi aproximando-se sobretudo da linguagem cinematográfica, vendo muito cinema e conhecendo alguns jovens cineastas. E também com o Luís com quem senti que havia um diálogo muito forte, e com a câmara em que eu, sem conhecer a linguagem, já tomava decisões muito convictas. Não tinha dúvidas nenhumas. Ou seja, não que dissesse o que queria… era mais: “Isto não quero, isto não quero, isto…”.
SPC: E já conhecias o trabalho da Maya Deren, ou da Yvonne Rainer?
OM: Maya Deren, Yvonne Rainer, não conhecia na altura, isso é muito bizarro, não conhecia. E estava em Nova Iorque. Conheci mais tarde. Porque eu entrei no cinema, mas claro, o cinema experimental, é um cinema um pouco sofisticado. Porque o cinema experimental, experimental, conheci-o mais tarde. Quando falamos de Tarkovski e de Pasolini, da Nouvelle Vague, são cineastas que, de alguma maneira, trabalharam com a indústria cinematográfica e fizeram filmes. Não é como a Maya Deren… Mesmo que a Maya, para mim seja maravilhosa, fundamental, mas manteve-se num círculo… Maya não trabalhou com Hollywood, não trabalhou com a indústria, a grande produção. Coisa que Pasolini e Godard e outros, sim. Portanto, só conheci o seu trabalho muito mais tarde. A obra de Yvonne Rainer continuo a conhecê-la, tristemente, pouco. Agora que a Julie Perrin fez este livro (2013), eu tenho uma dívida pendente com o trabalho de Yvonne Rainer porque sei que é muito importante. Sinto que é alguém que realmente…. Intuo que o seu trabalho cinematográfico… não sei se o vou entender todo, porque é outra época também e isso traz uma relação com a câmara, não sei.
SPC: Eu acho que ela continua a ter um discurso muito interessante. E há pequenos detalhes que, se calhar, te interessam. Mas estavas a dizer-me que já tomavas decisões sobre a montagem…
OM: Sim tomava decisões de montagem. Do corte e do raccord, lembro-me muito bem porque, logo quando voltei, fiz a peça Lugares Intermédios (1993). E, nessa peça, tomei uma decisão que não cumpri, mas eu tinha o objectivo de produzir uma obra cénica e, em paralelo, uma obra audiovisual. Fora do palco. Um trabalho com a câmara fora do palco. Isso era, para mim, aquilo que eu queria fazer. Eu queria fazer um projecto que tivesse um formato cénico e um formato fílmico, lembro-me perfeitamente. Tudo isso como uma ideia de… Como é que se faz isso? Como se produz? E, em 1994, entrei em contacto com o Gil Mendo, em Portugal.
OM: Conheci o Gil Mendo aqui no teatro Pradillo, em Madrid. Eu comecei a descobrir a poesia de Fernando Pessoa e decidi que queria trabalhar com isso.
SPC: A tua mãe também escreve poesia, não é?
OM: Escreve poesia, é poeta. Graças a ela descobri muita coisa com a poesia. E, ainda hoje é… a minha casa, é uma casa (com livros). Quando eu vivia com a minha mãe estava tudo cheio de livros. Os livros são uma coisa muito presente, mesmo que a minha mãe se tenha feito poeta, não na sua juventude, mas já mais velha. A história dela é a de uma mulher que conseguiu encontrar o seu caminho já depois de ter tido filhos e tudo isso. Antes disso era mais uma mulher casada com duas filhas. Tenho uma irmã mais nova.
E pronto, houve este caminho do encontro com Pessoa, com o livro, um dos mais conhecidos O Livro do Desassossego. Depois comecei a conhecer os heterónimos e gostava muito de Álvaro de Campos. Bom, gostava de tudo, de Ricardo Reis, era muito… O universo de Pessoa era muito interessante. Entretanto, conheci…, ao mesmo tempo, não sei como, com Angers apareceu o Gil. O Gil Mendo conheceu o projecto e entrou em contacto comigo e veio ver um solo que eu apresentei aqui em Madrid. Nessa época, também estavam cá a Vera Mantero e o Francisco Camacho que vieram, também, aqui a Madrid. E então encontrámo-nos. Passado algum tempo, ele pegou no dossier e telefonou-me para dizer que estavam interessados em, se eu quisesse, trabalhar com… Porque eu tinha-lhe dito que gostava de trabalhar com um português. Imaginava um dueto e imaginava um homem português. E fiz umas audições. Nas audições estava o Miguel Pereira que eu não convidei, mas convidei então o Paulo Henrique. E nessa peça, eu mantive o princípio de fazer um trabalho com um formato cénico e ao mesmo tempo fazer um vídeo que se chamou Europas. Para esse vídeo, convidei a La Ribot e o (Francisco) Camacho, e fizemos as filmagens com o Ricardo Rezende, numa produtora que já não existe, que se chamava Lunática Filmes, em Lisboa, e que produziu o projecto, onde entrámos numa dinâmica já mais complexa de produção. Porque já havia aluguer de câmaras, havia uns exteriores e havia um interior. O Ricardo filmava e eu trabalhava com ele. O Ricardo Rezende é um realizador brasileiro, perdi o contacto com ele, entretanto, mas creio que continua ainda a viver em Portugal. Não sei. E fizemos, então, este vídeo já mais sofisticado. Mais complexo a nível de equipa onde o quadro da câmara seguia sempre muito… Era um enquadramento onde o corpo entrava e saía muito dentro do quadro e foi muito interessante porque ele deu-me a conhecer coisas já mais sofisticadas, lentes que permitiam estar longe. As personagens misturavam-se com as pessoas na rua. Então, já conseguíamos uma série de tratamentos da imagem que eram interessantes. Aparecia o desfocado, apareceram coisas da linguagem cinematográfica que ficaram interessantes. Mas aquilo de que me lembro realmente bem, no trabalho desse vídeo com o Ricardo, é da montagem. Foi na montagem de todas essas imagens que aconteceu realmente algo de fascinante. Porque a questão da montagem voltou a aparecer, outra vez, de uma maneira muito forte na minha “mirada” (olhar), sabes? E muito forte também no meu modo de perceber como essas coisas tinham de entrar e sair, porque estavam a entrar e a sair do quadro e logo a entrar e a sair da narrativa, não é? Das imagens. Mas eu não fiquei muito contente com esse vídeo. No sentido, em que ele se tornou um bocado grande e eu não pude controlar tudo nas decisões, eu não estava a cem por cento nas decisões. E quando, na época, usava-se o U-Matic e todo aquele sistema… Tínhamos um estúdio de montagem caríssimo. Então, nós fizemos muitas pré-montagens e chegámos às 24 horas pagas a uma pequena empresa de videodança em Barcelona que já não existe. Foi ela que promoveu o videodança em Espanha nos anos 1990, Canal Dansa. Lembro-me que a produtora… Ligávamos e eu pedia – “Dá-me 48h” – e ela dizia –”não”. 24 horas com um técnico de som… Eram aquelas máquinas, chegavas lá com os números. Que não tinham nada, nada a ver… E bom, lembro-me que houve decisões, que eu não tinha claras, decisões que tive que tomar em pouco tempo, numa mesa de montagem. E isso foi uma experiência dura, porque há coisas que teria mudado e não pude…
SPC: Portanto, a experiência que tinhas feito anteriormente com o vídeo no deserto do Arizona foi mais…
OM: Muito mais simples e tinha muito mais a ver comigo. O Luís, eu e a câmara, era um triângulo muito pequeno, muito cómodo.
SPC: E ainda te revês no resultado desse trabalho?
OM: Sim, sim, sim. E mesmo no Europas também. Mas, no Europas, as personagens… É mais ambicioso e realmente a construção da dramaturgia também, dessas personagens, quer dizer. Eu creio que há uma “mirada” sobre o espaço real. Que, a partir do espaço real, surge o imaginário. Um possível imaginário. Esse vídeo foi muito… O Europas tem uma história interessante, porque a minha produtora ficou muito chateada quando viu o resultado. Disse – “Isto não é videodança! Apoiei este projecto mas aqui não há dança. Aqui não há dança!” – (Risos!). E em pouco tempo uma personagem importante em Espanha na história da vídeo-arte, viu o vídeo, enquanto comissário, e apanhou-o para o incluir dentro de uma exposição no Museu Rainha Sofia, que era sobre “aspectos da vídeo-criação espanhola dos últimos anos”, para a qual o vídeo Europas foi seleccionado, de entre todos os vídeo de criadores internacionais que havia naquela altura no panorama da arte contemporânea. E a exposição tinha umas temáticas e o Europas foi integrado na temática de “espaços imaginados”. Entrou aí. Para mim foi muito importante porque esse trabalho figurou logo em exposições em museus importantes da Europa e da América Latina e não teve nenhum contacto com a dança, foi por outro lado. Por um circuito que, de repente, eu que não tinha relação com a arte contemporânea… Ou seja, entrou por aí pela vídeo-criação espanhola dos anos 1990. Onde estava também um vídeo do Francisco (Ruiz Infante). Eu não conhecia o Francisco. Chamava-se “vídeo-criação espanhola nos anos entre… (1988-1995)”, elegeram uma série de vídeos.
Em 1996 apareceu o Esto No Es Mi Cuerpo. Nessa peça, eu já trago a câmara para o palco, começo a trazer a câmara para o palco.
SPC: Eu lembro-me que, no workshop que fiz contigo no c.e.m. (Lisboa 2009), exploravas uma zona muito sensorial, talvez com os olhos fechados, muito relacionada com sentir e estar com… não necessariamente o “outro”, mas estar com o espaço, com a observação, com a atenção, com o toque. Uma relação que funciona como uma espécie de scanning. E que fez lembrar-me das repérages de cinema. De um corpo-câmara, um bocado como tu formulas, às vezes. E depois, talvez na mesma aula, passámos a trabalhar de um modo em que uns estão dentro, e os outros estão fora. Ou seja, em que se pode ver o que acontece a partir de fora. E pode alternar-se entre “ser câmara” fora (de cena), ou “ser câmara” dentro (de cena), ou ainda, aproveitar o lado sensorial mais relacionado com uma ideia de scanning, talvez. Ao mesmo tempo, num dos exercícios, propuseste o uso do texto e do microfone. Eu gostava que falasses um bocadinho disso tudo.
OM: Sim, eu lembro-me. (risos) Estava a lembrar-me da palavra “auscultar”… Em que ano é que fizemos essa oficina? Foi em 2009? Sim, o que acontece nos laboratórios é que… Em França, desde 2005, 2006, quando comecei a dar um laboratório com uma certa visibilidade pública dentro de um festival… Bom, convidaram-me para trabalhar com um grupo de pessoas. Escolhi um grupo de pessoas, havia algum dinheiro e foram feitos, durante um ano, três encontros de dez dias, cada encontro, dando o total de um mês. E lembro-me que foi aí que apareceu a primeira formulação do “Corpo Próximo”. Eu creio que houve a nível de formulações um momento em que aparece o “Corpo Próximo”, ou a “Próxima Mirada”, o “Olhar Próximo”. Aparece um espaço em que provavelmente o olhar como câmara começa a activar-se de uma maneira mais precisa. Ou começa a ser mais formulado o dispositivo em que, de repente, um corpo se activa e o outro acompanha com o olhar. É básico esse dueto que começa já a trabalhar com o que activa e o que olha. E essa questão de deslocar, de colocar dois corpos, em que um tem um papel de activo e o outro, a priori, de passivo – embora saibamos que o activo também é aquele que olha e que “passivo” quer dizer que estas questões de activo e de passivo começam a caminhar paralelamente – de alguma maneira, isso começava a questionar também esse espaço de intimidade. Esse possível espaço de confiança. E confiança no sentido de uma capacidade de poder deixar que o olhar (la mirada) seja uma questão de nudez também. No sentido mais amplo, de fragilidade, de vulnerabilidade. Realmente, esse scanner de que tu falas, essa capacidade de o olhar existir, em que o indivíduo pode estar, em que o indivíduo pode descobrir-se através do olhar do outro. Em que o indivíduo toma consciência e, através do olhar do outro, nota a sua presença – esse olhar do outro é realmente um olhar que tem a capacidade de interrogar. E esse interrogante tem a capacidade também de accionar a partir de um lugar mais, ou menos “previsível” – pré-visível – é também uma questão de emergência de ir a esse território onde as coisas emergem por uma sensibilidade, por uma memória. Emergem por uma história também, e emergem por tudo o que congrega a configuração de um indivíduo, aquilo que vem com ele. Com aquilo que existiu com ele até hoje. De alguma maneira, é esse ponto de partida da consciência de ti próprio, da tua própria energia, o que o próprio ser, pode dar, ou pode deixar ver. O que é que deixamos ver? Nós próprios também.
SPC: E porque é que fazes a escolha de começar por um lado tão sensorial, quase só táctil e de escuta, já que fechamos também um bocado os olhos, antes de chegar a esse olhar, a esse olhar-câmara e ao olhar do outro?
OM: Sim, eu penso que a questão dos olhos fechados tem algo que ver com… quando nós falamos da escuta, na dança, é como… É estranho porque a visão é algo que tem muitíssima informação e que pode impedir muitas vezes o… Não digo que possa impedir o sentir, porque não é bem isso… Mas pode impedir o deixar, a capacidade de abandonar-se. A possibilidade de não estar na imagem. Como que impede a possibilidade de desprender-se da imagem. E o modo como a imagem surge, não tanto como uma configuração de leitura, mas mais como uma… A imagem surge de algo anterior e, no fundo, quase inevitável, como uma possível consequência, mas que não é tão importante. A imagem é inevitável, mas não é onde está a comunicação. De qualquer forma, é uma passagem, mas não é da imagem que partimos como comunicação. É algo anterior. Então, provavelmente é difícil de nomear e, provavelmente, estamos a falar de algo mais sensitivo, de algo menos visível que são as estratégias corporais, espácio-temporais, em que entramos em contacto com algo mais sensorial sabendo que é um processo. Para mim, o trabalho é também ter, ou encontrar pontos comuns a partir do sensitivo e do conceptual e poder, não tendo as ligações completas, ir saltando. Ao mesmo tempo, poder também fazer esse exercício de percorrer o intervalo entre o “sensitivo” e o mais “intelectual”. Porque tanto um, como o outro têm que se encontrar. Não podemos ficar num, ou não podemos ficar no outro, os dois são necessários. Parece-me que os dois é que formam um indivíduo, o ser o humano. Com os dois podemos avançar e aprender, não só com um, ou só com o outro.
SPC: Quando partes para um trabalho artístico, seja para um palco, seja para gravar em vídeo, haverá uma experiência inicial, um afecto que vem já dessas pesquisas, ou estás a querer explorar um tema e vais pesquisar? Ou as duas coisas?
OM: É curioso falar de investigação e falar da relação com o público… Eu tenho a sensação de que a minha investigação se desenvolveu com a experiência com o público, em grande parte. Tenho a intuição que, não é que não tenha desenvolvido no estúdio um trabalho de investigação, mas eu não concebo, no que produzi até agora, um trabalho de investigação sem o público. E é estranho, dizê-lo desta maneira. Porque, de algum modo, é como se esse trabalho de investigação existisse porque sabemos que vai existir um espectador, porque sabemos que vai existir esse outro lado do olhar, de recepção. E que, provavelmente entre o corpo e esse foco, esse ponto de vista, provavelmente, as questões que surgem de diálogo, de relacionamento, de aproximação, de intercâmbio, de comunicação, são como dois espaços que estão… É como se este público e, provavelmente, a câmara tenham desenvolvido o meu trabalho também. Essas questões, primeiro espácio-temporais, mas também, finalmente, a câmara é como um espectador privilegiado, como costumo dizer. Porque essa câmara está perto do meu corpo questiona o que está dentro e o que está fora. Essa câmara é como, no fundo, uma extensão do meu próprio olhar e é uma câmara que também desloca o meu próprio olhar e o do espectador. E existe como um medium, é uma interface entre o público e eu. É como um elemento da mecânica da sensação, que desestabiliza, ou que também é … sobretudo que desloca, não é? E depois entra a narrativa com a ficção e a realidade. Mas eu creio que a questão da investigação… Eu estou quase permanentemente num estado performativo. Quase permanentemente. Mesmo sozinha no estúdio.
SPC: Chamar-lhe-ías uma investigação performativa? Sentes isso assim?
OM: Performativa no sentido de realmente haver um objectivo de olhar exterior. Está presente constantemente. Eu sempre senti o público. Isto é um pouco metafísico, ehh… Sílvia, mas eu sempre senti um espectador comigo, estando sozinha no estúdio. Sempre trabalhei com ele. Com um fantasma, quem sabe, mas trabalhei. Claro que, por isso, me entendo tão bem com a câmara, porque dizes – “bom, se está, está, se não está, não está”. Está, está sempre presente, eu já estou a trabalhar com ele sozinha. É estranho é uma maneira. Mas ao ouvir-te, essa investigação… O que aconteceu com os anos é que provavelmente eu investiguei muito em directo com o público. Mais do que tenho noção. Tendo umas partituras, tendo umas peças construídas.
SPC: E com temas?
OM: Com temas, sim muito. Ou seja, são peças muitos feitas, por isso, eu ultimamente falo de uma escrita. Não creio que seja a palavra certa, mas aproxima-se. Uma ideia de aleatório no sentido em que se constrói uma arquitectura onde o sistema de probabilidades está todo controlado, não há surpresas, porque há uma partitura. Mas há variantes e essas variantes é que modificam. Pois essa partitura já tem um tempo, há um ritmo, enquanto há sensibilidade que pode estar ainda mais mecânica, ou mais sensível. Mas isso já está realmente aí. Claro que eu nessa formulação vivi com o público experimentações nas peças. Realmente!
SPC: E gostarias de falar de alguma delas em especial? Chegámos a falar de Europas, queres falar um bocadinho do Daisy Planet (1999)?
OM: Em Daisy Planet, no ano de 1999, eu colaborei com um artista importante para mim que foi o Daniel Miracle. Porque o Daniel Miracle vinha das artes visuais e com ele construí a trilogia do corpo: Esto No Es Mi Cuerpo, Desordens para um Quarteto. Em 1999, Mon Amour. Essa é uma outra questão, também, as temáticas, não é? Ter uma estratégia também finalmente de tempo. Nas temáticas, há realmente uma estratégia de tempo que te permite dizer – “Bom, eu não vou fazer uma peça, ela já está…”. Eu tenho esta trilogia que é como um tempo em que eu tenho a preocupação com o corpo.
SPC: Tens um afecto muito forte por alguns temas? Aquilo que te move, mesmo que seja um afecto invisível, leva-te a uma Branca de Neve do João César Monteiro (2000), ou ao Fernando Pessoa, ou a um filme do Godard?
OM: Sim, o afecto existe na história do indivíduo, não é? O afecto na tua memória e nas tuas coisas pessoais. E realmente isso, de alguma maneira, é motor e conecta-se com elementos externos, ou conecta-se, neste caso, sim, com o César Monteiro. É como uma transposição do lugar onde realmente se encontra o pessoal com o universal e com a memória colectiva, também. A relação da memória individual com a colectiva, realmente. Isso começa a acontecer muito no projecto de LabOFilm, de Blancanieves (2008). Porque realmente aí, assim como na trilogia do corpo, as temáticas não são tão evidentes, no sentido em que partem mais de uma busca de investigação de conceitos de corpo, do corpo involuntário… Lembro-me disto do corpo, dos gestos involuntários… Lembro-me também de um corpo que não pode apoiar-se no que sabe, mas tem que voltar a redescobrir-se. Não posso apoiar-me na dança que eu aprendi… Então, de repente volta a ser um corpo inocente, um corpo torpe, que cai, mas, de repente, um corpo igual a mim. Não é um corpo agradável, no sentido em que não é eficaz. É um corpo que balbucia outra vez, que não sabe bem. Está preocupado em voltar a escutar o que produz e, então, está nesse plano mais primário, quem sabe, mais emergente, não é? Na trilogia que fiz com o Daniel Miracle, aí sim, já trabalhámos com as câmaras no palco. Foi aí que as câmaras entraram. E eu aí vi que fazer produção era muito difícil. E pensei – “se eu quero ter uma peça num formato cénico e um filme de película, então…” Eu não sabia, via tudo a ser tão difícil. Entendi como se dava por adquirida a possibilidade de a produção manejar tantos parâmetros. Já não só de mercado, de interlocutores, de associações com quem trabalhas, mas com quem colaboras, com quem produzes. Ou seja, tudo tão, tão que eu já dizia – “Eu concentro-me no palco e tudo vem ter ao palco, não é?” Eu quero continuar a trabalhar numa caixa negra e naquilo que é a frontalidade. Sempre me interessou a caixa negra pelo enquadramento, pela câmara, porque, para mim, teatro e cinema estão muito ligados. O que se passa é que um é real e o outro é… Um existe e o outro… Um é o suporte e o outro é totalmente fictício. Inventa-se, não é? A máquina do cinema cria o espaço, o teatro existe e constrói-se e cria a magia a partir de outro lugar. Mas eu vejo aí um ponto de cruzamento muito importante, a caixa cénica como quadro (ou enquadramento). Então, na trilogia, houve vários formatos, trabalhámos com super 8, trabalhámos coisas com câmaras em directo. Foi muito falhada essa experiência, um problema…. Omitimos pontos de vista de câmaras com vista na diagonal. Começámos a falar a partir de fora de campo, dentro do quadro visível e não visível para a câmara, para o espectador. Isto foi em 1999 e foi falhado porque não houve tempo, nem o espaço para podermos trabalhar. Tínhamos um estúdio onde chegávamos com as câmaras e logo depois, às 19h, havia aulas de dança contemporânea. Tínhamos que levar a câmara para casa e tínhamos sempre que voltar a pôr a câmara… Não tivemos os meios para poder dar à técnica da câmara um pouco desse tempo de compreensão. Quando eu fiz o Daisy Planet em 1999 – foi muito interessante porque Daisy Planet chegou como encomenda a propósito do amor – eu trabalhei sozinha, sem o Daniel, porque ele já estava a viver em Barcelona, num estúdio onde criámos um dispositivo que era uma mala que tinha uma câmara. Era o neo-kinok, um projecto que o Daniel desenvolveu e levou para outros terrenos. Havia uma câmara e ele dizia-me – “Vais ter uma mala com uma câmara que te filma. Assim, uma câmara de má qualidade, quase como uma câmara de vigilância que tem uma lente angular estranha, tem um foco um pouco disforme e tal”. Eu concordo e vamos falando. Descobrimos que o Daisy Planet, o planeta das margaridas era um modelo da teoria Gaia. Não sei se já terás ouvido falar dela, é uma teoria científica que considera que tudo é um organismo vivo e que estamos dentro da era de… O Dorion Sagan fala disso. Comecei a investigar um livro de Dorion Sagan que se chama Bioesferas (1989). Existe a teoria do planeta das margaridas que está composto por animais, etc… O Daisy Planet altera os comportamentos do organismo e, à medida que começo a recolher formulações da teoria Gaia, começo a aplicá-las como se fosse uma ficção de amor. Eu trabalhava nessa obra num espaço em que eu sabia que iria estar uma câmara. Já conhecia a posição da câmara, onde estaria colocada, mas não tinha a câmara ainda.
SPC: Como um espelho?
OM: Sim, eu sabia onde estava e, já sabia que haveria uma televisão que estaria ligada a essa câmara e que me daria um contra plano. Já estava a trabalhar num plano e contra plano, com esse ponto de vista. Construí essa peça inteira sem a câmara. A câmara chegou uma semana antes da estreia. Também sabia que quando me aproximava dessa câmara, era a minha cara que se via. Já sabia o que produzia quando chegava lá e havia um microfone que falava com ela, que se via através de uma televisão perto do público e que estava a construir uma dissociação do corpo e da imagem, e que estava a questionar a profundidade de campo. Eu já estava (a trabalhar) com coisas que, para mim, não precisavam da câmara, porque eu sabia em que é que estava a trabalhar a nível de linguagem com a câmara e o que é que iria ver-se. E isso foi muito, muito interessante. Por vezes, estava em directo e noutras vezes estava em diferido. Porque fazíamos um registo antes de o público vir.
SPC: Portanto, uma ficção?
OM: Uma ficção que misturava tudo um pouco e, às vezes, eu desenhava uma margarida no palco, não sei. Fazia coisas, às vezes, coincidiam em tempo real, outras vezes havia um diferido também.
SPC: E o texto da peça está relacionado com esse livro?
OM: Sim, o texto foi uma ficção que eu construí a partir daí e que acaba por introduzir dados biográficos. Também porque sabes que as margaridas dão para fazer aquele jogo de tirar as pétalas. “Me quiere, no me quiere, verdad, ou mentira?“. E aí entrou um trabalho maravilhoso de ficção e de escrita e de passado…. Aí entrou a magia… O texto de Daisy Planet tomou uma dimensão muito interessante, dedicada a “como construir uma peça de…”. Narrativamente falando, formalmente falando, onde realmente todas as peças a partir de um ponto fazem todas clac, clac, clac e de repente, quando eu me dei conta, Daisy Planet já estava aí. Não era uma peça que tivesse de questionar, ou de ver melhor o que está claro e o que não está, não. É como escrever um livro onde… Bom, claro que tens de construir a história, não é? E para construir a história tens de encontrar os elementos que te interessam, mas foi tudo de repente. Não havia questões, as coisas iam entrando e a história foi-se construindo. Foi muito interessante, porque foi muito simples. Muito, muito simples, não havia “dores de cabeça” conceptualmente. Era como se realmente os elementos fossem os apropriados para poder contar a história que havia para contar. Era uma história em que se misturava o biográfico com o ficcional, que misturava o espaço real com um dispositivo muito simples. Com o espaço de ficção a partir do real. Era uma história que questionava a verdade com a mentira e onde aparecia a ironia, e eu não conhecia muito a ironia na escrita. Então, foi uma peça que surgiu como uma prenda, sabes? Como um bolinho de chocolate, como se dissesse – “Vou fazer uma sobremesa” – e depois sai muito bem. Mas tu não fizeste nada, saiu bem porque sim, não é? Não pensaste que tinha de ficar bom, era mais forte que tu porque já estava aí. Foi uma experiência linda Daisy Planet, muito agradável. Coreograficamente, tinha umas coisas de cabaret, umas coreografias gestuais muito engraçadas. Ou seja, foi uma liberdade muito grande construir com a consciência de construir uma narração, uma história. Isso foi muito interessante porque guardo dessa peça a memória de não estar “aqui” (na cabeça, cerebral). Vem de um lugar onde uma pessoa está concentrada num tema e está a encontrar coisas que, nesse momento, acabam por ser importantes porque despertam algo e constróis e vai. E quando vai, e vai até ao público, então vai e vai psssff… Porque, de repente, é uma peça que toda a gente viu. Com a qual toda a gente se identifica. Toda a gente encontra momentos em que se passam coisas que fazem lembrar a sua própria memória pessoal. Toda a gente tem um ritmo. São 40 minutos. Era perfeito, se a criação fosse sempre assim… Porque não é que seja uma peça fácil, mas é uma peça que tem a capacidade de, desde o primeiro momento até ao final, comunicar com o público o que se passa.
Nessa peça dá-se algo importante também que é a partilha do espaço com o corpo e o texto, porque é uma peça onde o texto, a nível dramatúrgico, quase tem o mesmo… Noutras peças eu trabalho mais o texto como enunciado, como momentos em que dizes algo e com repetições e tal. Ali houve uma construção de texto onde me lembro que o texto abria espaço ao corpo, nessa construção de Daisy Planet. Era muito interessante. O texto introduzia no espaço, o corpo, como uma continuação, mas de um modo autónomo. Não era que o corpo representasse o que diz o texto. O espaço-texto tinha a sua autonomia, o espaço-corpo tinha a sua autonomia, mas o tecido, a trama dramatúrgica. O texto é que abria espaço para o corpo, para que o corpo pudesse… O texto lançava umas questões, uma história mais ficcional e, de repente, o corpo entrava na dança. Foi muito interessante porque realmente o texto era texto, e o movimento era movimento. Quando entrava a dança, com uma música, entrava a dança na sua escrita coreográfica. E quando entrava o texto, havia um momento de texto, como um actor que conta e desenvolve uma história. Lembro-me de como Daisy Planet conseguiu articular o espaço e o texto e o espaço e o movimento, com autonomia, mas completamente como um espelho, quase, sabes? Juntos construíam a dramaturgia de uma maneira muito… Passavas de ouvir uma história para um corpo… Era muito interessante. (…)
SPC: Na composição dos títulos das tuas peças, por exemplo, em estO NO eS Mi CuerpO, decides pôr maiúsculas e minúsculas em lugares inesperados. Essa decisão vem de algum lugar?
OM: Sim, tem uma brincadeira com a… Eu penso que o jogo do maiúsculo/minúsculo é algo que pode realmente tirar volume às palavras. Quase grafismo, não é? Como um jogo de visibilidade. E de repente estO NO eS Mi CuerpO é como eu o vi. Tem essa vibração em mim, mas como diz o Francisco, na leitura das letras, há como um movimento. Cria-se um movimento.
SPC: Ah é quase como um coreografia da grafia.
OM: Gosto, diverte-me muito, gosto.
SPC: Tu estavas a dizer que estO NO eS Mi CuerpO foi apresentado no Théatre de La Ville…
OM: Bom, nesse período passaram-se coisas muito intensas, porque estO NO eS Mi CuerpO… fi-lo e estreei-o aqui no Pradillo. Eu sabia que era o meu primeiro solo realmente importante. Porque quando eu digo estO NO eS Mi CuerpO estava lá (inscrita) a questão de tu olhares para o meu corpo. Este não é o meu corpo, porque podia ser o teu corpo. Na realidade o teu corpo está aqui e também de quem é este corpo que está ali? No fundo, é mais quase olhar, para ver o que aqui está, estas questões. E bom, eu não pensei em no trabalho de Magritte Ceci N’Est Pas Une Pipe. Nãããoo e perguntaram-me logo sobre isso – “Mas tu pensaste em Magritte…”. Não, por acaso, não, mas agora digo, “bom que curioso!”. Conheço um pouco Magritte, mas não tinha esta ligação. Anos mais tarde, a conselheira do Théâtre de la Ville veio pedir aos coreógrafos de Madrid, vídeos das suas peças. E em 2000, ou 1999, o director liga-me, tinha visto estO NO eS Mi CuerpO e quis programá-lo no Théâtre de la Ville. E eu fiquei assim (de boca aberta) e disse – “Olha, não podes imaginar. Quando eu fiz esse solo houve muito boas críticas e foi uma coisa muito forte e não houve ninguém em Espanha que programasse e mandei um vídeo para França e tal e a resposta foi sempre muito interessante, mas nada, não havia nada, não tive oportunidade”. E eu disse-lhe que era como uma prenda, não por ser no Théâtre de La Ville, mas porque era um solo importante que pudesse voltar a ver-se. Era muito físico, era duro, mas eu sentia-me bem (também eram só cinco anos mais tarde). Sentia-me com a força e com o desejo de retomá-lo e encontrei-me no ano de 2001, no Théâtre de La Ville com um grande palco. Com o plateau mais incrível do mundo, mil lugares fechados. E dei por mim a trabalhar com o Daniel, as minhas coisas, imensos técnicos ao redor. Aquele solo ali foi mágico. Para mim, o espaço do solo é um espaço de dimensões grandes. Onde o corpo, dialoga não com a intimidade… Ou seja, eu tenho ali as minhas maneiras de entender o espaço e de entender o solo e também tudo o que eu concebi. Podemos falar da câmara, da profundidade de campo, da arquitectura, do próximo, do distante. São coisas que criei muito ali, no espaço real, não só na imagem, mas na construção do espaço real. Mas tudo isto questiona, se o que fazes é mais íntimo, é mais… Depende das obras depois, não é? Foi muito forte tudo o que se estava a passar ali. Eu nunca me esqueci de o João Fiadeiro dizer – tinha-o encontrado nuns encontros aqui e ele foi muito duro comigo, assim – “O que fazes no Théâtre de La Ville, isso é muito perigoso” (risos de ambas!!). “Mas João, o que me estás a dizer, por exemplo, se te chamassem, tu dirias que não? Ou seja, a mim dão-me um espaço enorme para um solo que sempre sonhei fazer num espaço grande e faço o meu trabalho, não tenho… faço tudo. O que se passa é que vou ter um camarim muito grande e depois tenho uns posters assim por Paris. Mas eu faço o mesmo, não estou a mudar nada. Estou a fazer o que quero fazer e com todo esse…”. Então, no ano de 2001, passou-se isto e, em 2003, La Suite a Dernière Mot aparece com um dispositivo de câmaras com o Daniel a colaborar muito comigo e volta a acontecer um pouco como em Daisy Planet. Todo o processo da obra… Eu não tinha as câmaras, mas eu já sabia onde estavam. A câmara aparece quase no final e articula o diálogo de maneira visível, mas seria logo, como se já tivesse assistido antes. O Daniel dizia – “Olga, quase que não tenho que pensar muito, porque tu já estás a criar o plano. Já estás a dialogar com o ponto de vista, ou seja, o que há a fazer é por a câmara e ligar. Mas tu já construíste quase o espaço todo”.
SPC: Há algum destes trabalhos em que tenhas começado ao contrário, ou seja, já tens a câmara contigo e começas com ela? Imagino que sim, na Blancanieves.
OM: No Solo a Ciegas (2008) e Blancanieves (2009). O Solo a Ciegas é o primeiro trabalho em que eu começo já no estúdio (…) No Solo a Ciegas, eu queria um filme que o espectador não visse directamente e comecei, logo desde o início, com um dispositivo onde ainda não havia espelho, mas havia uma luz que era uma projecção em que sentíamos o movimento de imagens que estavam fora de campo. E apareceu no Solo a Ciegas e aí aparece o espelho.
SPC: Então, e esta ideia de fora de campo que é também o nome que dás à tua estrutura de produção, é uma ideia que trazes das peças para a associação, ou é um “fora de campo” que trazes contigo e tanto é a tua associação, como…
OM: O “fora de campo” mais impressionante que vivi e que fiz foi no Suite au Dernière Mot. Quando saio para a rua toda nua com um microfone e o público fica sozinho na sala com a minha conversa com eles, não é? Já no Más Público Más Privado (2000), com Juan Dominguez, o quarteto, havia um fora de campo. Iamos ao camarim, iamos à loja e construíamos em directo umas filmagens connosco. Mas o que mais me interessou no “fora de campo” foi o som. Quando saía para fora, para a rua, e o público não sabia se o que estava a acontecer era verdade, ou era uma filmagem. E era verdade e era muito forte, porque me coloquei numa situação louca toda nua, a ver o mundo assim… E realmente, eu descobri e toda agente disse que isso seria muito interessante nas imagens… Eu descobri que aí o fora de campo do som, me… Voltamos à dissociação da imagem do corpo e do som. Como diz o Francisco (Ruiz Infante) “tempos partilhados diferentes”. E penso que o olhar, quando uma pessoa trabalha a partir do olhar, todo esse questionamento do olhar como arquitectura do espaço. De “onde”, eu falo neste workshop de onde falta o “como”, não é? Mas parte do “onde”, da localização, onde se situa esse corpo? Penso que é uma prática, penso que o fora de campo, nessa prática, ao longo das minhas peças, foi como que conquistando o meu olhar. É como uma prática onde o meu olhar foi começando a ir para a periferia. Foi indo procurar o que não está presente. Foi como que procurando e isso apareceu nas peças, por pequenitas coisas, uma aqui, outra ali, até que, de repente dei-me conta que a minha prática de olhar para fora de campo é muito forte.
Eu também trabalho com a câmara, eu tenho milhões de fotos que não sei o que fazer com elas. Tenho imenso material. Eu estou a trabalhar com a câmara fotográfica e, no dia-a-dia o fora de campo entra. Aquilo que fotografo, sem pensar. Por isso te digo, uma prática, o olho vai procurar. Tem uma prática na qual já está essa periferia da própria imagem. Está já quase de uma maneira intuitiva, intuitiva pela prática. Orgânica! Surpreendem-me sempre porque os fora de campo que foram aparecendo, foram aparecendo organicamente como se já estivessem lá. E o que eu estou a fazer é identificá-los, mas eles já lá estão… São necessários, não conceptualmente, são necessários vitalmente. Graças a eles, o corpo encontra um discurso que realmente lhe pertence e que realmente alimenta o que está a procurar. Ou seja, o fora de campo transforma-se numa respiração, quase. Nesse sentido, transforma-se em algo vital. Não é só composicional, ou compositivo, de composição, ou de montagem, mesmo se se concretiza nisso, se o analisas de uma maneira conceptual. Mas eu não o vivo tão assim, vivo-o de forma mais orgânica com o espaço. Que me permite, a mim mesma, deslocar-me da minha própria narrativa como vivência. Ou seja, é uma ferramenta técnica com a qual eu vivo, o “fora de campo”. Eu vivo no “fora de campo”. Não o invento para construir, mas sim converte-se numa experiência de existência forte desse corpo. Há anos que também comecei a dar-me conta do fascínio pelo quadro de Velasquez, As Meninas. Que sempre conheci, desde pequena, mas um dia dei-me conta que esse quadro era realmente “a minha cabeça”. Ou seja, que eu estou com Velasquez. Sim, quer dizer que a minha cabeça é realmente complexa nesse sentido, porque o olhar não está no que se vê, está noutro lugar. É muito difícil isso…
SPC: Mas também viaja, não é? Podes colocar-te no lugar do outro, podes estar com…
OM: Sim, de alguma maneira também é essa consciência… Eu insisto que, aquilo que tem que se ver, está mais além. Mas também isto é muito metafísico, creio. O que tem de se ver, não é talvez, a primeira coisa… A construção do que se vê… A visão existe porque existe a não-visão. E a consciência dessa visão. As coisas existem graças às coisas que não existem e nesse sentido também é como uma capacidade de poder… Não é de desestabilizar, no meu caso, não é tanto isso, mas é como que poder estar, quem sabe, em vários sítios visíveis e não visíveis ao mesmo tempo. E são todos os pontos de vista possíveis, também a consciência, e quando falamos no quadro de dentro e de fora, também, quem fabrica todo o quadro, é o espectador. No quadro de Velasquez não é ele que está a olhar, não é? Mas com a questão de o quadro estar, quem sabe, naquele que está a olhar para o quadro. Naquele que vê, não é a imagem, mas sim a… Porque a dado momento, quando Velasquez se põe ali e olha para o espectador, é como se ele estivesse a pintar o quadro que não vemos.
SPC: Eu pergunto-me se terá sido, também isso, que te interessou no filme Branca de Neve, do João César Monteiro.
OM: Sim, claro. Pareceu-me que a ideia, sem conhecer os detalhes, porque depois ouvi histórias. Mas a ideia de que este homem tinha decidido fazer um quadro negro… Olha que na história de arte contemporânea estão os filmes de Débord, dada conceptualmente negro, negro. César Monteiro é do cinema, da narrativa, é o conto, é o… E realmente, para mim foi, para mim é uma coisa… A Branca de Neve de César Monteiro é realmente uma… Deve ter sido muito duro, não? Muito duro negar a imagem para ele, mas quando tu estudas a base e conheces as personagens da Branca de Neve, de Walser… Realmente Walser, mais do que uma peça visual, é uma peça sonora, porque realmente esses corpos… Os corpos estão identificados por um tom. Não por uma imagem, é o tom que dá a imagem e realmente a força, e começo já a “puxar a brasa à minha sardinha”, aquilo que dá força a este trabalho de João César Monteiro é chegar a imaginar o corpo através da voz. É muito forte. Nós relacionamo-nos com o corpo, através do corpo, através do som. Por aí estamos a falar também do som, daquilo que se ouve, daquilo que o corpo produz. Porque é outra entrada para o corpo.
SPC: Quando vi o filme do João César Monteiro, tive a sensação também de estar a experimentar o dispositivo, de me dar conta da sala de cinema, “esta sala de cinema”, com estas relações de espaço, com este ecrã. E, de facto, o preto que não chega a ser preto porque é cinzento, não é? Algo que está à frente da câmara, editado também com umas imagens de um céu, lembra qualquer coisa.
OM: Um azul luminoso, uma coisa estranha assim com uma textura de luz.
SPC: Acho que há também umas ruínas. E é uma peça de “estar”, mais do que de ver, foi uma experiência muito física, para mim. A duração desse “estar”, de experimentar o dispositivo e de ouvir. Não é evidente que uma pessoa entre nessa disposição, não é?
OM: Bom, é como uma peça radiofónica, mas num cinema, e amplificada e com a consciência de que não é uma peça radiofónica porque há imagens. A luz está lá e, de vez em quando, a objectiva descobre qualquer coisa, esse azul, essas ruínas. E realmente eu tinha a sensação… porque não é a mesma coisa vê-lo numa televisão, ou vê-lo no cinema. É aí que se deve vê-lo, no grande ecrã. Não sei se te aconteceu, mas no final, era como se esses corpos pudessem estar, ao vivo, por detrás do ecrã com uns microfones fabricando esses diálogos, não é? Porque a dado momento, é como se as vozes saíssem desse grande ecrã negro e pudessem estar lá por trás, não é? Uma consciência de dispositivo da selecção é muito forte e tu como espectadora, dentro. Não de fora, a olhar, mas dentro. O negro é a sala de cinema, é o preto, é a luz. O cinema é luz, na sua origem. Antes de ser imagem é luz, projecta luz. E é uma experiência única, não é? Não é uma questão de gostar, ou não gostar, é uma experiência.
SPC: É qualquer coisa que obriga a pensar.
OM: Obriga a pensar, muito, muito.
[…]
Em 2007, comecei a intuir, que o meu trabalho com a câmara já tinha que ir na direcção de uma conversa mais adulta. Se eu queria realmente continuar a produzir coisas com a câmara no espaço real… e daí surgiu…. Primeiro foi o Solo a Ciegas com o dispositivo fílmico como luz, um espelho, já com alguma montagem de imagens da guerra, de coisas que me interessaram. E daí surgiu a Blancanieves (2010-2012), mais tarde, como dispositivo. Mas eu comecei com duas câmaras simultâneas já em 2007 e fiz um primeiro trabalho com um campo-contra-campo, um fora de campo e uma coisa que se programou dentro da exposição. E isso ficou por aí. Só mais tarde houve uma pessoa aqui de uma galeria que o viu e que me ligou dizendo – “Aquilo tal e tal, vais desenvolver?” – E eu disse – “Sim, eu gostava de convidar a Sara Vaz”, com quem já tinha trabalhado na Dança e o seu Duplo (2006), “e começar a trabalhar com dois corpos e dois pontos de vista e explorar mais isso”. E aí criei a equipa do labOfilm aqui com muito pouco dinheiro, na galeria. E começámos com um dos pontos de vista, a terceira câmara que foi a câmara… Porque no primeiro dispositivo havia uma câmara subjectiva e uma câmara geral. E depois construiu-se um terceiro ponto de vista que era o contra-campo do geral e era já um contra-campo, não deformado, mas já com um eixo, que no início correspondia e depois modificava-se. E então, o dispositivo das câmaras apanhava já a arquitectura, e o corpo entrou… Eu tinha a câmara, às vezes para construir planos, desde o princípio. Era a câmara que dominava e definia o espaço. O corpo entrava a construir do princípio ao fim. E aquilo que fiz na inauguração foi… o público via a rodagem e a seguir, a rodagem, nessa sala via-se, como instalação, noutro espaço. Começou-se com esse tipo de experiências e o que se passou depois foi que, quando chegou Blancanieves em 2010-2011-2012, em Guimarães terminou-se. Eu senti que a prática do “corpo operador” aí foi muito forte. Foi tão forte o que se viveu com o corpo operador, na construção desse filme, que, para mim, há quase como vinte anos de trajectórias. Como se desbloqueasse… “Vamos a ver como continuo eu no espaço performativo”. Porque é, como já disse, “agora onde vou com a câmara?”. Porque eu já cumpri o meu sonho. O meu sonho, ou o meu desejo, era fazer um filme ao vivo. E quando eu terminei O Lamento de Branca de Neve (2012), que foi uma coisa muito complexa e sofisticada. Aí sim, a questão de qual é o passo seguinte, se eu tenho de ficar. Não sei se tenho de ficar no palco e não fazer filmes, mas realmente, eu construí para mim um espaço onde… O que eu vivi com a câmara, no palco, já não vou poder…. Foi muito forte O Lamento de Branca de Neve. Foi uma obsessão e eu consegui aquilo, poderá ficar melhor, mas eu consegui aquilo, pu-lo em prática, vivi-o, não é? Então aparece a Carmen/Shakeaspeare (2014-2015). Por isso acho que a Carmen/Shakespeare com o dispositivo e com o Francisco são questões… A colaboração em si já é uma questão. Grande, não?
São muitos anos em que a questão do corpo está sempre a… Quando o Fiadeiro veio ver O Lamento de Branca de Neve, gostei muito do seu comentário, porque ele ficou assim … Eu fiquei contente por ele ter vindo, porque eu pensava que, como está nessa fase de distância, pensei que não lhe iria interessar. Mas ele ficou interessado, na Branca de Neve, eu senti. Disse – “Ah este é um trabalho muito mais preciso do que outros trabalhos anteriores”. Isto foi na Culturgest, foi fantástico! Foram umas apresentações realmente mágicas, eu fiquei tão contente de deixar essa memória na Culturgest. (…) Tu sabes que tivemos, na Real, uma experiência… Quando a Sara e eu fomos para a Real, não tínhamos o dispositivo connosco. O dispositivo viajava directamente de França para a Culturgest. Então, nós construímos um dispositivo falso sem câmaras e trabalhámos tudo. O Francisco Infante e a Marta Blanco foram testemunhas. Vieram no último dia da Real e ele fala-me ainda dessa experiência que tivemos na Real do LabOFilm. A Sara e eu tínhamos: Isto era uma câmara, isto é… E assim fazíamos tudo. Como se as câmaras estivessem sincronizadas. No princípio era muito mecânico, um pouco absurdo. E com a prática, começámos a ta ta ta ta ta… Quando fizemos a última passagem. E tu não sabes a força que deu essa prática sem o dispositivo, quando voltámos ao corpo, fomos encontrarmo-nos com o dispositivo. Foi incrível!
Coreógrafa e artista visual, Olga Mesa é uma das figuras-chave da dança espanhola contemporânea. Desde os anos 1990, a sua busca por uma escrita pessoal e renovada do corpo levou-a a afirmar a parte íntima da representação, através de uma construção que combina expressão e percepção. Na sua carreira internacional, ela propõe obras de natureza experimental, deliberadamente à margem da dança, da performance e das artes visuais: a trilogia corporal Res, non verba (1996-1999), o ciclo em cinco movimentos Mais público, mais privado (2001-2006) e o projecto labOfilm (2010- 2012). Nos últimos dez anos, tem vindo a trabalhar com o artista sem-formato Francisco Ruiz de Infante na construção do projecto coreográfico, plástico e audiovisual Carmen // Shakespeare (2012-2022). Juntos, dirigem a companhia Hors // Champ // Fuera de Campo, criando contexto e práticas para as artes interdisciplinares. Olga Mesa dirige também oficinas de criação coreográfica e laboratórios utilizando o corpo como meio narrativo. Nestes contextos, ela dialoga com processos de análise e de reflexão ligados a outras artes como o cinema, o som, as artes visuais e a literatura. Actualmente, está a trabalhar numa nova peça a solo: A table of one’s own (hands dance) e a preparar uma exposição retrospectiva para o CGAC em Santiago de Compostela (2023). Com sede em Estrasburgo desde 2005, as criações cénicas da sua companhia foram apresentadas em vários festivais e instituições artísticas em França, Espanha, Portugal, Estados Unidos, Suíça, Itália, Alemanha, Áustria, Inglaterra, Uruguai, Chile, Brasil, Argentina, Marrocos, Mali…
Sílvia Pinto Coelho. Coreógrafa, investigadora integrada no ICNOVA (CEEC individual) e prof. auxiliar convidada na FCSH – UNL, é doutorada e mestre em Ciências da Comunicação, licenciada em Antropologia e bacharel em Dança. Desde 1996 coreografa e participa em processos de pesquisa, de pedagogia e em filmes com colaboradores de várias áreas. Apresentou peças suas em Portugal, Berlim e Madrid, destacando Einzimmerwohnung, 2004, Capricho#2 / Outra Coisa, com Daniel Pizamiglio, 2017, e Capricho#12 / Jogo de Espelhos, com Ricardo Freitas, 2019. Influenciada pelas técnicas e estéticas coreográficas mais difundidas nos anos 1990, frequenta o c.e.m. desde 1994, faz o CIDC do Forum Dança (1997-99) e aulas diárias para profissionais na Tanzfabrik (Berlim, 2002-05). Foi membro fundadora da produtora PELE Filmes, com Hugo Vieira da Silva (2000-2005). Desde 2018 assume a direcção da Interact – revista online (ICNOVA), primeiro com Catarina Patrício e actualmente com Luís Mendonça. É editora e instigadora da CRATERA juntamente com o grupo de Performance e Cognição (ICNOVA).