De corpo despido, mas quem ficou nua fui eu.
PRIMÁRIAS & EXÓTICAS / O que pisamos, de Joana Levi / Apneia Colectiva
PENHA.SCO / Festival Temps d’Images, Lisboa 17 e 18 de outubro de 2024
Rita Vilhena
® Alípio Padilha
É uma performance que tem tanto de sensível como de honesta. A criadora e intérprete Joana Levi recebe-nos despida, sem roupa, com chinelos nos pés, óculos no cimo da cabeça e um texto impresso em folhas A4 enroladas na mão.
Do início ao fim, a performance mantém um tom pessoal e coloquial, criando uma proximidade que nos faz sentir à vontade, sem pudor, para nos aproximarmos do corpo despido, olhar para dentro dos mini slides, caminhar no escuro ou até deitar no chão.
No início, ainda no foyer, no topo das escadas, Joana contextualiza o projeto e explica o que vai acontecer. Descemos as escadas da Penha.SCO com a confiança de que não estamos prestes a presenciar uma performance erótica, mas sim algo mais primário na genealogia da arte de representar e encantar. Joana é uma contadora de histórias — histórias que mais parecem fábulas de desejos, mecanismos de poder e superações dos desafios inusitados que a vida impõe a um corpo.
A interpretação é tão exótica quanto as árvores que nos dá a conhecer através das imagens de Angela Alegria. Uma mulher despida lê e entrelaça uma narrativa sobre a jornada do processo criativo, o seu fascínio pelo reino vegetal e a sua experiência com o cancro da mama. É uma história que me chega despida de preconceitos sobre o corpo feminino, livre do meta-discurso da criação artística, e que, ao mesmo tempo, está repleta de questões sobre o vazio, sobre o Nada.
Uma criação inserida no âmbito do projeto O QUE PISAMOS da Apneia Colectiva. Joana investigou, juntamente com a arqueóloga Ana Braz, as espécies vegetais que habitam os “jardins coloniais” do Palácio Pancas Palha e a Mata da Margaraça. Com os criadores Cire Ndiaye (música), Luís Moreira (luz) e Artur Pispalhas (som), Levi criou um ambiente sombrio, mas íntimo, para contar o que mais me marcou: a banalidade e, simultaneamente, o impacto devastador de um cancro da mama.
Com a mesma abordagem acolhedora e pessoal, a peça termina com um convite: “Eu dou-vos uma semente de carvalho e vocês dão-me uma pergunta”. Joana permanece no estreito corredor que dá acesso à escada de saída, ainda despida, com um saquinho cheio de sementes. Eu tento escrever algumas perguntas que gostaria de lhe fazer, mas, na verdade, tudo o que quero é deixar-lhe uma mensagem de amor. E deixo uma: “Como é que, em tanta sombra, eu só vejo a tua luz?”
Rita Vilhena é coreógrafa, intérprete e investigadora de dança contemporânea e performance. Em 2005, criou e dirigiu Baila Louca – improvisação e performance (em Roterdão, Holanda), em 2017, deu início à Partícula Extravagante e, em 2023, o palco experimental Partícula no Açúcar (em Lisboa, Portugal). É mestre em Artes Cénicas (FCSH), doutoranda em Estudos Artísticos-Arte e Mediações (FCSH) e Investigadora no ICNOVA – Performance e Cognição.