© Ben Gonthier

Por um lado / Por outro, direcção de Carlos Manuel Oliveira, Galeria FOCO, 8 de abril de 2021

 

António Figueiredo Marques

A peça fala sobre o impossível e o banal, ou sobre a impossibilidade do banal, ou ainda a terceira suposição. Enuncio esta hipótese de narrativização – em resposta a um breve chat com o Carlos, uma provocação controlada/arriscada. Afinal uma aprendizagem é passível de ser depositada numa asserção? Contactar, sentir, manipular, torcer, andar, deitar são operações resgatadas à ação e cumpridas num espaço e num tempo. Já anoitece e a Galeria Foco, dependência numa loja na Rua Antero de Quental 55A, também se vê de fora.

Estes dois lados a que o título alude serão, eventualmente, dois andares, rés-do-chão e cave, e dois momentos. Os dois andares instituem-se numa coisa: a arquitetura. Forte e amplificadora. Num dos momentos, a descoberta é feita manipulando folhas de papel, algumas com letras impressas a preto. Num segundo, essa superfície plana e delimitada dá lugar a outra, placas de madeira aproximadamente do tamanho de um corpo humano. E o papel que é feito da celulose da madeira.

Há um formalismo implícito nesta montagem que se inicia na organização e limpidez da arquitetura do lugar. Vertical, amplo, branco, iluminado. Pesquisa formal que ocorre nos cinco corpos dos intérpretes, cada um buscando no agir como sentir, como reagir e, provavelmente, como organizar a matéria do toque, bem como o próprio toque (ou, aliás, a apreensão) no corpo. Pelo que as duas margens, formal e sensorial, alcançarão uma terceira: a banalidade do impossível?

Ainda do lado de fora da galeria já estamos lá dentro. Os vidros deixam passar a luz e, com ela, os exercícios no interior chegam aos olhos do transeunte insuspeito que circula ao fim do dia. Nos vidros, como espelhos, são impressas as imagens em movimento que mostram o que acontece cá dentro e cá fora. Se não é um trabalho site-specific, é, pelo menos, dependente deste local.

Placas erguidas, corpos vagarosos, num espaço despojado que se impõe. Entramos, e nesse passo, os visitantes coexistem nas linhas no espaço que os performers desenham. Tudo o que é visível está no visível porque o que está fora da luz é, afinal, tangente à pele.

Não sei ao certo qual é a dis/semelhança entre o cubo branco e a caixa negra, mas não deixo de sobrepor e subtrair um ao outro. Talvez: a caixa negra feita para mostrar o despojamento acaba por tudo conter, como uma folha em branco, a pedra em bruto, esvaziada da ficção, massa em potência. O cubo branco se, num primeiro momento, mostra tudo o que contém, acaba por apagar tudo porque a luz branca do visível esbate e homogeneíza. Onde o pormenor pode engolir o global. Em ambas a capacidade de destacar, recontar, citar.

Este excesso de luz faz da peça hiper-real, como um exame microscópico, na verdade como qualquer estudo. Ao dissecar e questionar o gesto e o movimento, os performers estão também a criar um manual, mas que se apagará, senão como resquício de conhecimento.

Guardo algumas aprendizagens. Vânia Doutel Vaz com toda a superfície frontal do corpo a tocar o chão e, num ímpeto, carrega no botão que faz a plataforma onde está Ana Trincão descer um metro. A seguir ao espanto cinético no seu corpo, Trincão responde com os pés ao alto. Após o choque, o equilíbrio retoma. Naquele segundo, todos os performers estão finamente ligados: uma imobilidade lenta, uma torção lateral, um encaixe no ângulo da sala. Estado interrompido por Daniel Pizamiglio que assenta os dois cantos da placa de madeira no chão, com som. Antes e várias vezes, examinava a imobilidade ao mesmo tempo que cobria a visão com demora. Já Adriano Vicente amachuca folhas com que enche a parte de trás da camisola. Nunca é um monstro corcunda – são apenas folhas de papel que enchem e fazem volume, ruído e contacto na pele das costas. Bruno Bandolino espalha e equilibra um leque de folhas a desfazer-se, os pés em desequilíbrio também; folhas sobre as quais, em canudo, se vai sentar.

Todas as sequências geram e resultam de uma interrupção do sistema provisoriamente criado. De um sistema, continuando para o seguinte. Acúmulo descontínuo de como conhecer e desconhecer. Episteme longa, com vagar, suscetível.

A palavra, que não existe nesta dança, será o porém. Contudo, embora, no entanto, aliás: como o título cheio de luz e evidência racional esconde na placa diagonal em que se sustenta.

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