BLESSED (Meg Stuart com Francisco Camacho, Ghent, 2007), estreou em Lisboa, no pequeno auditório do CCB, em 2007
Sílvia Pinto Coelho
Dez anos mais tarde, em 2017, pudemos rever uma das peças que, em 2007, imediata e intuitivamente passou a fazer parte do reportório imagético e crítico na área da dança do século XXI.
As forças exteriores e dos objectos “inanimados”, enquanto coreógrafas das vidas, estavam finalmente visíveis e partilhadas em palco, de um modo bem mais eficaz do que a simulação da ventania súbita de Gust (Camacho, 1997).
Entretanto, em Junho de 2017 (TMM), não pudemos deixar de estabelecer uma relação entre as forças da água e do fogo. São uma bênção (blessed) em pequenas e controladas doses, mas são a mortandade quando nos apanham desprevenidos, sem hipótese de fuga.
O dilúvio vinha, para Meg Stuart, a pretexto do furacão Katrina que arrasou a cidade onde nasceu e cresceu, Nova Orleães (2005). Por coincidência, na semana em que voltámos a ver BLESSED, morreram sessenta e quatro pessoas apanhadas num dos incêndios mais súbitos que apareceu nas matas do interior de Portugal, em Pedrógão Grande (17-06-2017).
A peça é composta por um cenário simples, recortado em cartão, que é habitado por uma personagem aparentemente feliz. Camacho caminha com o passo estudado e partilhando uma densidade de movimento que distingue aquela dança de um andar de todos os dias. Mas é um andar que nos dá a sensação de “todos os dias”, articulado como que “em maquete”, poderia ser uma personagem de lego, ou de playmobil. Há um mundo, um abrigo/casa, uma harmonia natural com um coqueiro que talvez até desse frutos, e um cisne enorme, um animal calmo, um símbolo especial para as histórias da dança europeias (“Lago dos Cisnes”, “Morte do Cisne”, “Canto do Cisne”, etc). Há a música de Hahn Rowe que acompanha e fornece dramaturgia à cena, desaparecendo nalguns momentos-chave em que se ouve só a chuva. O som da água a cair é real, há água a cair no palco, tem um peso, uma humidade, um cheiro. Este acontecimento da queda de água real empresta à peça um ambiente especialmente “mágico” que nos transporta para lá do lugar onde estamos (no teatro).
Na cena, começa a chover e a chuva pode ser evitada se estivermos abrigados. A personagem abriga-se. Mas estes abrigos precários amolecem e cedem se a chuva persiste. A identificação com um “nós” naquela situação ganha peso, a peça convoca-nos a par de “uma pessoa qualquer”. “Eu” vivo o drama diário daquela personagem num mundo precário/maquete. O grande pescoço de cisne dobra “vencido”, o coqueiro abate, o abrigo quase engole a personagem “em casa”, com a água que o seu tecto carrega. E, finalmente, a personagem reage, há uns grafittis que ele pixa com latas de spray colorido, ainda dentro do abrigo, tudo o resto passa pela relação com os destroços produzidos pelo excesso de água. O desalento, as perdas, tudo desfeito, a tentativa persistente de voltar a construir abrigos a partir dos destroços. Até desistir, até parar de chover, até… Depois entra uma outra fase, o “exército de Jesus” pode ler-se na sua T-Shirt. Logo em seguida veste uma roupa alegre que lhe dá uma outra cara, uma outra vida, uma sobrevida depois da desgraça, o luto. Depois do luto a bonança? Entra, então, uma personagem exótica. A bailarina Kotomi Nishiwaki aparece a dançar com uma roupa justa, coleante e colorida, de saltos altíssimos como que surgida de um qualquer canal de televisão americano. Alegre, exuberante, de penas na cabeça, xaile de clubes americanos indistinguíveis, rodopia, abre os braços, samba e alonga num lunge. Um sorriso forçado por uma prótese de plástico segura os lábios de Camacho. A personagem, “talvez americana” com traços japoneses, sai. A música alegre sai. Volta a música da rotina da peça. Há sucessivas mudanças de roupa, há um momento, em que as mudanças vêm de fora, de alguém que entra a partir da plateia, Abraham Hurtado, e que lhe empresta várias personagens exóticas, glamorosas personagens de sucesso. A gestualidade de Camacho, que acompanha a mudança rápida de figurinos, lembra a iconografia cristã e as poses dos Santos nas igrejas. “Santos de vestir” por figurinistas ou designers de moda?
Rever peças de coreógrafos que são também exímios bailarinos é quase sempre dançar, ou “co-imaginar” com eles, confirmando que há uma história da dança em nós. Há um imaginário colectivo de Blessed? Pelo modo como ressoa em mim, acho que sim.