para um esboço de editorial
A aventura de iniciar este site com e sobre artes performativas começou pelo enorme desejo de activar um espaço para acolher propostas discursivas de investigadores, artistas, profissionais e estudantes nas áreas de artes performativas, estudos artísticos e afins.
Da crítica à recensão, passando pela conversa e entrevista, sentimos existir, ainda, uma grande falta de discurso, de capacidade de inscrição e de criação de memória nesta área que possa ser legado, lastro, ou início de conversa, não só com colegas de várias gerações, mas também com uma comunidade mais geral.
A pausa e o abrandamento pandémicos obrigaram-nos a testar, de novo, os nossos papéis e estatutos em diversas adaptações dos eventos “ao vivo”, com distância, remediados e a partir de casa.
Não é coincidência termos podido iniciar este projecto durante o segundo confinamento pandémico, em Portugal. Tivemos urgência de o pôr online.
Não é por acaso que quase todas as contribuições pendem mais para o lado do afecto amoroso do que para a crítica intempestiva. Temos saudades da cena, dos eventos, das pessoas ao vivo.
No mesmo momento em que a NASA nos presenteia com belas fotos de enormes crateras em Marte, António Azenha muda a sua capa de perfil no FB para exibir uma fotografia da escultura que anda a preparar. A fotografia N D Whistle mostra três das crateras dessa escultura e é, por isso, convidada a integrar a imagem do site. Veio mesmo a calhar. Assim como veio mesmo a calhar, o belo texto “Abrindo Crateras” de Ana Pais (2018) sobre a peça de Vera Mantero Até que um Dia Deus é Destruído pelo Extremo Exercício da Beleza (2006). No artigo, a fotografia de Nadia Lauro mostra a cenografia que construiu para a peça, composta por um grande meteorito que exibe também as literais crateras.
No entanto, quando o nome Cratera foi votado, outras motivações surgiram. Uma cratera pode sugerir ligarmo-nos às profundezas dos discursos num tempo caracterizado pela necessidade de observar a Terra e o drama da extracção de minério. Enquanto produto de um embate que cria um vazio, a cratera forma uma circunscrição que encaramos como enquadramento situado, “a situação”.
Vemos igualmente, na cratera, uma concreção, uma ferida na superfície, algo que transforma, que é irreversível e irreparável. É impossível não reparar numa cratera e parar para ver melhor, para pensar. É um lugar, é um chão e pode provocar um encontro. Um encontro que se deseja fundado numa verdadeira partilha do sensível. Agora torna-se quase urgente repensar a capacidade e a dramaturgia do encontro mediadas pelos diversos dispositivos online que vieram “substituir” os acontecimentos com hora e local marcados para a fruição.
Será que a teatralidade, a performatividade, a dramaturgia do encontro online podem ser repensados a partir da experiência dos actuais confinamentos gerais?
A palavra “cratera” sugeriu ainda um contraponto às “fissuras”, “dobras”, “bainhas”, “brechas”, “intervalos”, “abismos” que aparecem em diversos textos mais ou menos filosóficos, mais ou menos poéticos. A tonalidade afectiva da palavra cratera dá-nos um sabor a “chão” aprofundado, mas também a “território desterritorializado” que nos recorda futuros distópicos.
A cratera e o vulcão têm uma performatividade facilmente associável ao drama energético da vida. Simultaneamente dentro e fora, cima e baixo, relevo e profundidade, cor de fogo e preto e branco, geométrico e disforme, seco e dramático.
As contribuições de António Azenha e de Ana Pais, já elencadas, fazem parte de uma colecção de “achados”. As outras contribuições constituem um painel mais alargado, que irá sendo construído pelos investigadores que integram o grupo Performance e Cognição do ICNOVA.
O ebook Arte da Performance Made in Portugal, Uma Aproximação à(s) História(s) da Arte da Performance Portuguesa de Cláudia Madeira (2020) ficou pronto durante a pandemia e o seu lançamento será agora possível de assinalar com a publicação simultânea das duas recensões (de Juan Albarrán e de Paulo Reis) e da mesa-redonda online em data a anunciar.
A investigação sobre a arte da performance em Portugal surgiu no percurso de Cláudia Madeira como um acaso ou acidente, e propõe uma aproximação a essas histórias tendo em conta o seu carácter “especulativo”.
Na recensão sobre o mais recente livro da colecção do ICNOVA, Albarrán contextualiza esta pesquisa à luz de outras histórias da performance no mundo, questionando hierarquias e o eurocentrismo. Em paralelo, o investigador sugere ainda as modalidades de entrelaçamento entre as práticas performativas e as historiográficas.
Com efeito, a performance artística e a performance social enfrentam-se numa relação de espelhamento ou de refracção, como Reis aponta na sua recensão, em que o olhar ancorado no presente permite reconstruir um gesto trazido de outra temporalidade.
Ainda dentro do campo das recensões, fazemos uma chamada para o artigo publicado no International Journal of Performance Arts and Digital Media por Rosa Cisneros sobre o projecto BlackBox, coordenado por Carla Fernandes, explorando as intersecções entre dança e novas tecnologia.
Recuperando o contacto e os fluxos carnais que ligam artistas e públicos, através dos eventos ao vivo, nessa teia de embates de espectadoria de que sentimos falta (notre manque), apresentamos um olhar de António Figueiredo Marques sobre o espectáculo de Marlene Monteiro Freitas estreado no ano passado e uma visão panorâmica sobre os solos de Mónica Calle revisitados e vividos. Criações fundadas na fisicalidade, no corpo e na energia vital que surgem agora nas Erupções. Se numa proposta podemos encontrar a textura telúrica e a esfera da intimidade revelada, na outra temos o espanto da variação rítmica e geométrica, a maquinação étnica e geográfica; em ambas, o impulso da fragilidade.
Talvez toda a crítica de artes performativas esteja contida no implicado parágrafo de abertura do texto de Raquel Rodrigues Madeira que viu Ion do coreógrafo grego Papadopoulos e relata a experiência de corpos enlaçados, individuais e colectivos. Transportando-nos para uma exaltação do olhar, é-nos dado enfoque nas deslocações inesperadas e na surpresa dos desenhos propostos.
Sílvia Pinto Coelho trouxe-nos do seu arquivo algum magma subterrâneo para a Cordilheira, a conversa-entrevista com o coreógrafo João Fiadeiro, em 2014, aborda o trabalho de Fiadeiro numa fase de transição entre a sua investigação, com Fernanda Eugênio e uma série de outros investigadores, e o regresso à criação artística com Carolina Campos e Daniel Pizamiglio.
Reparar, acolher o desconhecido, manter as perguntas activas, em vez de dar respostas, são alguns dos lugares por onde a conversa se passeia. Fiadeiro relata também o processo do seu relacionamento com a obra de Helena Almeida (1934 – 2018), fazendo-a dialogar com a sua própria prática artística, na peça I Am Here (2003).
Como a crítica pode ser frescura, além de intempestiva, mesmo quando ficou empilhada sob as páginas dos dias, Paulo Filipe Monteiro recorda o cinema jovem feito do ímpeto de Pedro Cabeleira, recupera o teatro, tão Strinberg e tão contemporâneo na condução de Paulo Pinto, e a dança dos sete arrepiantes bailarinos em Turbulência de São Castro e António Cabrita. É um resgate do tempo para o presente.
A performatividade não assentará apenas no cinético e no tridimensional. É essa a aposta de João Garcia Miguel no livro Dos corpos e dos milagres que sopra o agir para dentro da caneta que desenha e escreve. Apelidada de “escritura instrumental”, trata-se de um exercício de uma matemática que falha, como o próprio afirma, onde a linguagem e a colagem são performadas e a palavra se torna textura, toque e quiçá o corpo mesmo. João, que não viu o seu espetáculo em palco, fustigado pelo vírus paralisante, encenou o milagre irrepetível como interlocutor da cena, do poema, da grafia.
Referimo-nos, por fim, ao mais recente Seminário Permanente, já no seu 13º encontro, que contou com a presença de Isabel Valverde, coreógrafa e investigadora, convidada por Clara Gomes, num debate em torno do seu projeto de ciberperformance Senses Places, cujo resultado pode ser visto no Facebook do ICNOVA.
Com suavidade tectónica, mas também com as cicatrizes com que somos afectados, entramos agora em diálogo, em busca de outros organismos, constelações, interrupções e ligamentos.
Porventura, alguém irá reparar que esta é já uma segunda versão de um primeiro editorial. Na verdade, por vezes, os meteoritos caem duas vezes na mesma cratera.
P’la CRATERA e grupo de Performance & Cognição,
António Figueiredo Marques e Sílvia Pinto Coelho
4 de Março de 2021